Linha Azul

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Eu ando muito pelo metrô de São Paulo. Às vezes fico mais tempo dentro daqueles trens por semana do que comendo ou me divertindo. Num vai e vem de pessoas que nem se olham, você presta atenção nos detalhes da plataforma. Nas cores das propagandas. Na máquina de livros, às vezes até para e compra um livro, mas geralmente não dá tempo.

Depois de quase dez anos de convivência íntima, não é difícil recriar, em detalhes, várias estações de metrô. Da linha azul, eu sei a ordem correta de todas as estações de cor. Meu inconsciente se delicia ao me colocar em um sonho que simula essa rotina.

O que me causa mais medo nos sonhos são aqueles reais demais.

Eu sabia que estava de noite mesmo sem ter visto a rua. Caminhava com pressa entre a linha amarela a linha verde, naquele corredor infinito que todo paulistano conhece entre a estação paulista e a consolação, que na verdade são a mesma, mas ao mesmo tempo não são. Bem, esse não é o assunto. Eu gosto de entrar sempre no último vagão e nunca sei explicar o porque. Uma das coisas que comprova que estava tarde era a quantidade reduzida de pessoas. Depois das onze e meia da noite, o metrô fica quase vazio. Principalmente nas baldeações. O último vagão então... só tinha eu. Entrei no trem sentido Jabaquara.

Foi estranho. Eu tinha certeza que estava na linha verde e de repente, estava na linha azul.

Deu partida. Eu me sentei no canto direito de uma das cadeiras azul escuro ao lado da janela, no meio do vagão. Um comportamento completamente padrão. Estava mais escuro que o comum lá dentro. Muito mais escuro, mas era como muitas vezes acontecia, quando eles desligam as luzes ao chegar muito perto na próxima estação. De alguma forma não me incomodava. O movimento era constante e eu olhava a informação sobre as estações da linha azul acima da porta. A luz piscava do vermelho pro verde mostrando que ele passava por elas rápido, mas não parava. Os trilhos pareciam infinitos e as plataformas pareciam não existir.

A luz piscou verde da Santa Cruz. Neste instante, eu me perguntei o que estava fazendo. Eu não morava mais em Diadema com a minha mãe, por que estava indo em direção à região metropolitana de São Paulo? Eu apenas aceitei que existia um motivo e eu só não me lembrava. Estava mais frio que o normal, mas eles sempre exageram no ar condicionado. Perguntei-me se seria melhor descer na saúde e pegar um ônibus, ou ir até o terminal Jabaquara pegar o trólebus. Enquanto pensava, não me dei conta da escuridão mais densa que se estendia cada vez mais pelo vagão.

Meu coração deu uma leve acelerada, mas eu tentei me manter tranquila. Eu pego esse metrô todo dia, nada de mais vai acontecer.

Quando o trem finalmente parou em uma plataforma, era a saúde. Resolvi descer, estava com medo. Não gosto do escuro. As portas abriram e me levantei com pressa, quase como se adivinhasse que ela fosse fechar rápido demais. O som do alarme de fechamento soou alto em meus ouvidos e eu encarei a luz vermelha piscando na porta à minha frente. Tentei me apressar para sair, mas não deu tempo.

Em pé, na frente da porta, eu senti o trem voltar a andar. Meu coração estava sem ritmo enquanto um medo absurdo crescia em mim.

Não queria virar a cabeça. Eu sentia seu olhar sobre mim.

Ela estava mais perto, podia ouvir seu tremer exatamente à minha esquerda. Estava a menos de vinte centímetros de mim. Meus olhos tentavam vê-la sem que a cabeça se mexesse, mas era difícil. A da garota de boca aberta cujo os dentes batiam forte enquanto ela tremia. O frio dela parecia chegar até mim.

A água pingava se seus cabelos negros, mas as gotas tinham um tom de azul escuro que quase não se dava para ver pela ausência de luz suficiente. Um segundo. Fechei os olhos.

Eu estou sonhando.

Eu estou sonhando.

Eu estou sonhando.

Repetia em minha cabeça sem parar, mas ela continuava ali. Abri os olhos novamente.

Sua mão começou a vir em minha direção, os dedos estavam enrugados como se ela tivesse estado na água por muito tempo. A camisola de mangas curtas e que iam até os joelhos estava em tons azulados e escorria água por suas pernas até os pés.

A água fazia um um caminho até meus pés e eu senti o gelo que fez meu corpo arrepiar. Eu sabia que não podia me mexer. O pânico não deixava porque eu tinha a certeza que morreria no menor dos movimentos que fizesse.

Eu estava sentindo a água nos meus pés. Eu estava... descalça?

Eu nunca andaria descalça no metro.

Eu estou sonhando.

Acordei.

Motivos para ter medo do escuro - microcontosOnde histórias criam vida. Descubra agora