John Watson
I
(***)
Olha esse menino, pequeno, desnutrido, só trouxe problemas desde que nasceu...
John Watson inala bruscamente, tentando afastar a lembrança inundando seus pensamentos, obscurecendo suas esperanças infundadas de que tudo um dia poderia ser diferente para ele.
Porque ele não tem cheiro? Porque ele é tão magricela?
A voz de sua irmã alfa e mais velha reverbera através de seus ouvidos, o som distinto de sua voz aguda infantil ainda latente em sua memória adulta como se não tivesse acontecido há quase duas décadas. Ele lembra porque isso não aconteceu uma única vez, a pergunta era repetida dia após dia, a pergunta que seus pais não sabiam como responder ou não queriam admitir a resposta mais óbvia e assustadora. Ele não tinha cheiro, porque ele nasceu com defeito. Os anos passaram e a pergunta em vez de ser dita nos tons infantis curiosos, se tornou capciosa, intencionalmente maliciosa.
Harry era uma alfa, grande, poderosa, assim como seu pai. Sua mãe era uma ômega, nada a dizer de agradável sobre isso quando sua família possui os piores tipos de alfas que podem existir. John sabe, céus ele sabe que não são todos assim, cruéis e dominadores, mas enquanto crescia isso era toda a definição que se criou em seu subconsciente, agarrando-se como ervas daninhas ao seu sistema límbico, discriminando o mundo como: alfas maus, ômegas fracos, e taxando a si mesmo como aberração. Ele ainda mantinha a esperança em sua adolescência de que talvez ele seria um beta, talvez a vida não tivesse um senso de humor tão terrível e iria colocá-lo no meio mais neutro de todo esse turbilhão biológico. Mas ao que parece, a vida não se importa com o que ele deseja ou precisa. As coisas são o que são... E John não é. Ele não é uma alfa. Ele não é um ômega. Não um beta. Ele não é nada.
Seus pais começaram a desconfiar que havia alguma coisa com John quando ele completou catorze e nada aconteceu e não houve nenhum único indício sobre qual seu segundo gênero seria. Louise e Charles eram um casal tradicional em uma relação alfa/ômega, ligados desde que ambos tinham dezesseis e Louise entrou em seu primeiro calor acidental na escola secundária. Foi difícil, e não, não havia amor trocado entre eles, apenas a ligação química que os manteriam unidos pelo resto de suas vidas naturais. Destruir a ligação era possível, mas era um processo caro, doloroso e que envolvia risco de morte, então ambos apenas aceitaram o seu destino e resolveram seguir suas vidas juntos.
Charles era um alfa autoritário e compulsivamente infiel. Louise era submissa, aceitando que pelo menos teria comida em sua mesa e uma cama na qual dormir todas as noites. Harry nasceu depois do segundo calor que compartilharam, forte, imperativa, uma linda menina loira de olhos cinzentos.
Charles ainda não era um alcóolatra na época, então havia dinheiro para bons médicos. Ele não quis esperar pela apresentação para descobrir qual seria o segundo gênero de sua pequena Harriet, então pagou uma pequena fortuna por um teste de gênero. Ele festejou durante uma semana inteira com os amigos e familiares quando descobriu que sua princesa era uma alfa, sua primogênita veio ao mundo para ser uma forte e poderosa criatura.
Charles Watson não estava satisfeito. Ele queria mais. Ele queria uma ninhada de filhotes grandes, bons espécimes de machos e fêmeas alfas como um bom alfa deve produzir, mas um ano passou e sua ômega não engravidou, mesmo entrando em calor a cada exatos três meses. Novamente foram procurar os médicos para descobrirem que seria muito difícil, praticamente impossível ter outro filhote, pois o seu útero ômega fora danificado no primeiro parto.
Foi exatamente nesse momento que os problemas realmente começaram. As brigas, as agressões, a tortura psicológica, a bebedeira.
E cinco anos depois, tudo parecia insustentável, mas então milagrosamente veio a segunda gravidez. Charles Watson era novamente o alfa preocupado e Louise se sentiu esperançosa. Então nasceu seu pequeno Hamish. John Hamish Watson.
A essa altura, Charles já bebia compulsivamente. Bebia para afogar-se em autodepreciação, bebia para afogar as tristezas, bebia para não se sentir frustrado com o rumo que sua vida tomou, bebia para esquecer. Não houve dinheiro para fazer o teste de gênero no jovem bebê. Era um bebê pequeno, magrinho, mas tinha os mesmos cabelos e olhos de seu pai e o nariz arrebitado de sua mãe. Louise se apaixonou imediatamente pelo pequeno ser que era o seu menininho.
Os anos passaram, as brigas cresceram, e foi nesse clima doentio e insalubre que Harriet e John Watson foram crescendo. Catorze se tornou quinze e quinze em dezesseis, e depois de consultas médicas descobriram que John Watson nunca seria como os outros, porque ele não tinha um segundo gênero. Ele não era um alfa, nem um beta ou um ômega. Ele nunca sentiria o cheiro de um ômega no cio, nunca teria a acuidade mental de um beta trabalhador e esforçado, também não poderia ter o dom precioso de dar à luz a nenhum filho. Ele era uma vergonha. Uma abominação. Era assim que Charles Watson via o seu filho, como um investimento falho.
John mal tinha completado dezessete quando seu pai o colocou para fora de casa, com pouco mais que duas centenas de libras e todas as suas poucas coisas em uma mochila velha. Harry parecia angustiada, mas não interviu e sua mãe à esta altura da vida era muito opaca e muito deprimida para se importar com qualquer coisa no mundo.
Então John colocou sua mochila nas costas e prometeu a si mesmo que ele não seria definido pelo que ele não era, porque ele era primeira e primordialmente um homem, um ser humano digno, independente de biologia. E ele não deixaria ninguém minimizá-lo, porque John Watson, o pequeno John Watson seria mais do que sempre disseram que um dia ele seria capaz de ser.
(***)
A vida de John Watson mudou mais uma vez quando tudo o que ele conseguia pensar era comer uma bala e dar um fim à sua vida patética depois de voltar do Afeganistão. Ele tinha conseguido se formar em medicina, mas ele precisava, ansiava por perigo em sua vida e ao mesmo tempo tinha uma necessidade quase patológica de cuidar, então se juntou ao Exército Real e galgou o cargo de capitão no 5th Regimento dos Fuzileiros de Northumberland. Ele estava na sua terceira viagem, entendia farsi e pashto e era um atirador incrível. O exército era sua família. Foi o lugar onde ele se encontrou. Foi o lugar onde não importava ser alfa, beta, ômega ou nada, porque balas não se importam com o que você veste, com a cor de sua pele, com ideologia, religiosidade e muito menos com quantas libras você tem em sua conta bancária.
Havia muito terror, mas também havia beleza lá. Existia agonia no som das rajadas de tiros, mas alento no infinito azul do céu. Eram dias quentes e noites frias e um eterno senso de alerta, mesmo durante o sono. Era se sentir vivo, mesmo com tanta morte ao redor.
Então a bala que atravessou seu ombro esquerdo encontrou seu caminho através de sua carne, estilhaçando a única maneira de viver que ele conhecia durante muitos anos. Foi física e emocionalmente insuportavelmente desgastante.
Quando John voltou para Londres, tudo ao seu redor parecia em escalas de cinza, mesmo o céu constantemente nublado parecia afrontá-lo com a realidade dolorosa que o esperava. Aqui não era o Afeganistão. Aqui importava não o homem John Watson, médico, ex-fuzileiro da RAMC – Royal Army Medical Corps. A única coisa que o definia em uma cidade como essa era que o seu segundo gênero define até onde você pode ir.
Ômegas nunca médicos – apenas enfermeiros, bons para criação, gerar filhotes, caseiros e fracos, vulneráveis, com necessidade de serem protegidos. Betas, que podiam caminhar nas mais altas nuvens ou no submundo mais sombrio, sua falta de impulsos biológicos para procriação os permitia uma vida mais livre, escolhas diversas, nenhuma amarra química ligando-os a outro ser humano – seria bom talvez, John pensa... E alfas, ah... Esses dominam o mundo.
Ele se pega as vezes pensando nisso, pensando que se ele tivesse tido um segundo gênero, ele sem sombra de dúvidas desejaria ser um beta. Alfas sempre lhe deram um pouco de aversão. Ele conviveu com um pai e irmã que o aterrorizavam, o minimizavam diariamente – porque a maioria dos alfas que ele conheceu – mesmo no exército, achavam-se donos do mundo, embora de uma forma prática a afirmação seja fidedigna. Alfas, embora ligados à ômegas não tem impulsos de fidelidade, e eles podem estar com quanta pessoas desejarem. Os cargos políticos mais elevados sempre foram ocupados pelos Alfas, a necessidade de mandar parece ser algo entrelaçado no DNA deles.
... E alfas nunca foram a sua área.
John teve vários relacionamentos ao longo de sua vida. Mulheres betas em sua grande maioria esmagadora, talvez uns dois homens ômegas para experimentação – apenas punhetas furtivas depois da bebedeira em um Pub escuro, mas Alfas... Nunca um Alfa.
(***)
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Quando você elimina o impossível
Fanfiction95% da população mundial possui um segundo gênero, alfa, beta ou ômega. John Watson não faz parte desses 95%. Notas da história Dinâmica A/B/O (alfa/beta/ômega) / omegaverse. Sherlock pertence a Sir Arthur Conan Doyle e eu não ganho nada com isso al...