o gato quase preto no sótão

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Eu não sou supersticioso, acontece que morreu um gato no sótão, um gato preto pra ser exato.
Em noites passadas eu o ouvi gemendo. Parece que ainda escuto seu miado rouco quando me deito na cama fria.

E quanto tempo faz? 2 dias? Seriam 4? Talvez 7!? Bom, foi tempo suficiente para começar se espalhar um cheiro de morte por todos cantos da cozinha, como se mesmo morto o gato achasse um jeito de se locomover.

Já teria tirado ele - ou ela - e são nessas horas que me dou conta da minha existência não compartilhada. Digo: se eu tivesse uma esposa, marido, ou se quer filhos, eu subiria decidido no sótão, com um balde de ferro e um lenço a tampar meu nariz. Faria caretas horríveis de nojo enquanto minha família tiraria fotos do meu resgate ao cadáver. No final do dia iríamos rir das fotografias como sinal de que tudo valeu a pena e tudo fazia sentido.

Porém, não é essa a vida que escolhi. Em vez disso terei de ser meu próprio herói e tirar aquele bicho do sótão. E como eu não poderei gravar em fotos - muito menos o gato morto - cá estou escrevendo sobre esse momento ápice da minha vida. Só eu e o gato nessa casa velha, divididos por um andar cheio de conexão.

Conectados não só pelo odor, mas por todas pragas nojentas que a carne podre atraiu. Ontem enquanto comia minha sopa enlatada, ao levar uma colherada corajosa para a boca - blaft! Caiu um filhote de mosca direto na minha colher de pau, daqueles que parecem uma mini minhoca pálida. Se eu acreditasse em Deus agradeceria a ele por ter visto aquilo antes de levar para boca.
Desconheço minha casa, me prendi em seus cômodos. Não passo na cozinha para nada, eis o medo de cair um bicho em mim enquanto caminho por lá.

O banheiro também não está sendo um bom lugar a se ficar. Em alguma noite perdida eu saí do banho ensopado e deitei em meu descanso, deixando a banheira cheia de água. No dia seguinte, mosquitos e larvas flutuavam lá. Sem coragem de esvaziar a banheira insetuosa, apenas puxei as cortinas de plásticos para esconder a vergonha. Estou sem banho deste então, mas eu não sentia o quente do banho a muito tempo.

Tem uma bomba relógio no sótão, na qual explodirá em milhares de vermes que cairão como chuva de meu teto direto para o chão, minha cama, minha pia, minhas roupas, tudo, tudo que ocupa essa casa será ocupado por bichos imundos e sangue, inclusive eu.

Por enquanto só posso pedir perdão: o gato preto para ser exato não tem uma descrição exata. Pelos poucos segundos que entrei no sótão - no qual tive que recuar por conta do mal cheiro - eu só consegui ver que ele era preto em meio a escuridão e a poeira, então talvez ele fosse branco, mas o escuro o corrompeu, poderia ser amarelo, mas a poeira o consumiu. Estamos entendidos; por mais de não sabermos sua coloração podemos afirmar que tem 50% de gato preto lá em cima, assim me contendo em considerar ele um gato quase preto.

E sinceramente estou sendo preconceituoso em dar essa informação. Se a morte de um gato preto desse azar, então ele teria de estar nesta casa a mais tempo do que eu, pois foi só eu me mudar para cá que meus dias viraram noites. E vai saber, talvez ele realmente já morasse aqui. Talvez tenha uma família na qual vem visitar seu cadáver e então são deles os miados que escuto a noite. Talvez os miados sejam dele mesmo que implora uma miserável ajuda em seu leito de morte… eu desconheço minha própria casa, eu desconheço aonde durmo, como se aquele animal indefeso me expulsasse de meu lar apenas não existindo.

Mas ele existe, eu o existo. As pragas sabem disso, a casa também.

Como foi que ele entrou no meu sótão? Essa casa tem muitos buracos incontáveis… do que ele morreu?... Talvez já nasceu morto.

Talvez eu estivesse morto e não houvesse nenhum gato quase preto no sótão. O mal cheiro?! Seria do meu próprio corpo em decomposição. Os miados roucos?! Seria minha voz cansada querendo ouvir ela própria. As pragas?! Minha falta de coragem em se quer levantar um músculo para limpar essa casa. A poeira e o escuro?! Foi isso que me corrompeu, esses pensamentos de sujeira e nada.

Vou dormir e esperar que amanhã eu tenha uma confirmação de que realmente morreu alguém lá em cima, mas vou dormir sabendo que estou mais morto do que o gato, então por favor, se estiver lendo, tire meu corpo quase preto do sótão.

— Luiz G. Lopes

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