kim yerim e o sol

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quais princípios definem com exatidão a maldade intrínseca do indivíduo que escolhe prezar pelo resquício pulsante de felicidade que corre por suas veias ao invés de se render aos prazeres superficiais e temporários da carne? o que quer dizer, de fato, ser feita de gelo?

eu não sei. mas jaehyun sempre dizia que eu era, apesar de tudo, o mais cruel dos invernos.

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o sol anuncia seu crepúsculo remanescente e ri com graça ao se embrenhar pela penumbra do meu quarto. seus pés ferventes ostentam passos curtinhos em pernas desproporcionalmente compridas, e a ponta dos dedos faz cócegas nos meus cílios cobertos de joaninhas lábios-do-pecado com a calma de quem já fez aquilo milhares de vezes. meu cadáver inquieto empalidece e se ergue com pressa, e uma borboleta salta da minha garganta com as asas cobertas de saliva quando tusso com um pouco mais de força. é possível enxergar uma fina camada de geada nas maçãs do meu rosto de mármore quando viro o rosto para enxergá-la voando. que espertinha, penso. velejou, com toda a sua fragilidade através as janelas e me esqueceu aos pedaços espalhados nos lençóis, agradecendo por não ter as mesmas flores espinhentas de todas as manhãs crescendo na língua e nos dentes.

encaro as janelas com a mesma animação mórbida de todo dia, e tento curvar os lábios em um sorriso. talvez hoje possa ser um dia bom. quem sabe eu esteja caminhando em direção ao meu enterro ao levantar da cama para esquentar leite morno com chocolate do café da manhã? consigo sorrir com a imagem mental dos meus olhos abertos, o corpo sem vida e a boca escancarada, desesperadamente buscando por ar da inútil atmosfera de papel que cerca os meus lábios tão rachados quanto as minhas bochechas. me pergunto se sou capaz de forçar o silêncio no meu peito e permanecer viva sem poder de rugir meu amor aos quatro cantos do espaço, e chego à conclusão que talvez pare de respirar antes mesmo de me dar conta de que perdi o dom da fala, porque já perdi coisas demais pra conseguir suportar o peso do silêncio.

pacientemente projeto meu corpo em direção às janelas do cômodo, e quando olho para a tela renascentista sobre os fios do meu cabelo de ouro, posso enxergar estrelas explodindo com força no céu, júpiter oferecendo um anel de cubos de gelo à saturno; uma grande mancha vermelha pulsa no fundo meu coração. eu e o sol nos sentamos lado a lado, e ele descansa sobre os meus ombros ossudos de plástico como se pudesse cair no sono a qualquer instante, respirando seu calor na minhas clavículas.

— o que você está fazendo?— questiono em meio à uma risadinha abafada quando seus lábios assopram contra a pele azulada do meu pescoço.

— garantindo que os seus ossos não vão virar gelo. você tá tremendo pra caramba, yeri.

— tá tudo bem. eu gosto de quando os flocos de neve grudam nos meus olhos e os cílios ficam pesados. me sinto bonita. e acho que consigo reluzir um pouquinho mais dessa forma...— eu disse e balancei meus globos de vidro como se tentasse rachar espontaneamente de dentro para fora.

— isso é besteira. o belo é substancial, safira. e cristal até que pode brilhar e representar satisfação estética, mas você vai quebrar uma hora ou outra. simples assim. e quando menos esperar, vai estar esparramada no chão.

ri com um nervosismo latente e inegável pairando sobre a verdadeira justificativa que pesava nas minhas costas cobertas dos escombros da minha própria fé momentânea. uma gota de suor escorreu pela minha têmpora, e meu corpo tremia como se a intensificação prematura do inverno me punisse por acreditar que merecia aquele título horrendo. o dia brilhava nas cores de safiras que rasgavam o céu com tantos feixes de luz que quase não pude acreditar que aquele era o meu verdadeiro nome como viajante das estrelas. kim yerim era apenas um fio anelar de saturno, constituída de cadáveres de cometas caídos, mas o sol insistia em me machucar com aquela baboseira de que eu não podia ser feita de vidro. e eu o amava mais do que as rubras pontas dos meus óculos de sol gastos, mas em meu coração vivia a carcaça de uma garotinha que colecionava homenzinhos acorrentados em cadeias, e ela ria, e ria, e ria pra caralho, porque era divertido ver alguém se despedaçar e perder no meio do delirante frio do espaço.

yerim e safira jamais seriam existências separadas.

e eu meio que gosto muito de ser má.

— se eu quebrar, o que espera que eu faça para continuar brilhando?

saiba que, por baixo de todos esses estilhaços, eu ainda o amo.

— você pode se transformar em uma estrela. ou em quantas constelações quiser. — seus dedos arrastavam ouro pelas cicatrizes do meu rosto- já quase consigo ver lira nos seus olhos, e no nariz dá pra traçar os peixes. — ele disse e pude sentir o ouro arder e brilhar contra minha pele. parece que a grande mancha vermelha de júpiter agora vive nas minhas bochechas! — eu sou uma estrela também, afinal de contas.

— não... você é diferente.

— por que seria?

porque você é a prova viva de que estrelas ainda brilham depois de mortas, seu desgraçado.

e a culpa é só sua.

sua, sua, sua.

— ah, você sabe... — seus dedos longos acariciam a pluma das minhas bochechas, posso ouvi-lo sussurrar "não sei, não", e eu fecho os olhos, tentando desesperadamente não gritar. — o seu coração nem bate mais.

o sol se afasta, me encarando como se eu houvesse acabado de contar uma mentira terrível. a brisa escova as ondas e marés do meu cabelo desarrumado e abre as janelas escancaradas. encaro-as por segundos cantados. ela sussurra no pé do meu ouvido, dedilha a minha coluna, e uma asa rubi de borboleta pousa sobre meu colo. em seus traços, é possível ler-se gravado em uma caligrafia horrenda " você acabou de pensar em se jogar pela janela, não é?", e eu a coloco na boca e mastigo em silêncio, porque quero que aquelas palavras morem no meu intestino e sobrevivam ao ácido chacoalhado do meu estômago.

agora o brilho do sol já cintila em verde e rosa, e não há coisa mais bonita no mundo que a tristeza pairando em seus olhos. jaehyun me odeia em sua mancha vermelha, e isso é tão lindo que me sinto na obrigação de mastigá-lo com força como fiz com a aquela asa idiota.

— você é cruel, yerim. é má. inconsequente. e eu quase consigo acreditar que se diverte fazendo isso. já conversamos sobre o assunto milhares de vezes.

ah, aí está o nome de um milhão de doláres!

— as suas palavras não mudam a realidade, muito menos a justificam. e não precisa ficar tão chateado pela queda do seu teatrinho, eu sei que gosta de quando eu faço você esfriar. por deus, jae, você me acorda todas as manhãs.

os lábios de jaehyun tremiam. não tenho certeza, mas acho que algo esfriou por dentro.

— amanhã eu não vou voltar.

meu coração bateu com força, e por mais que lágrimas escorressem dos meus olhos e meu rosto brincasse no azul, eu sorri como se estivesse prestes a despencar do céu e o disse que estava mentindo.

— eu não vou voltar.

e não voltou.

ESTRELA DO BORBOLETÁRIOOnde histórias criam vida. Descubra agora