a perspectiva de falar a língua dos ventos parece muito fantasiosa quando encaixada em palavras, porque nunca foi uma qualidade humana ter fé no que não se pode morder, apertar, tocar ou beijar. yerim jamais fora alta o suficiente para que conseguisse me dar um beijo na boca, mas ela sussurrou ontem à noite no meu ouvido que o vento queria me pedir desculpas por me obrigar a ser uma borboleta. acho que não faz muito sentido pedir desculpas se eu já quebrei as asas há um milhão de anos, e parece meio estúpido que...
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tic-tac.
relógios malucos chorando e piscando nos cílios-ponteiros.
tic-tac.
já passam das três da manhã.
a noite é fria e absolutamente intragável quando esparramo meu corpo frágil na grama do jardim. dedos-folha de plantas abraçam a minha pele e as formigas me mordem aos pouquinhos, com calma, como se provassem o potencial jantar daquela madrugada faminta. "você é mesmo uma gracinha...", elas soletram entre as mordidas, e gostaria de poder desvendar o meu próprio sabor. beliscões gélidos se estendem pelas mãos, bochechas, olhos e pescoço, e quase consigo exprimir preocupação quando lembro da alergia acentuada a grama com a qual lutei a vida toda, mas ao invés disso eu apenas deito de bruços, deixo que o cheiro de terra fresco fique impregnado no meu cabelo, e abraço as flores com força.
que se foda, sabe? eu nem consigo voar mesmo.
os arbustos ao meu redor parecem se entrelaçar em todos os seus galhos e poeira, ressonando baixinho junto de enormes borboletas debruçadas e imersas em sonhos de papel. uma porção de asas coloridas e perfumes extravagantes cercam o jardim pálido ao sétimo cintilar da lua, e frutas rolam na grama como se já não estivessem mortas e prestes a apodrecer nas mãos de lagartas espalhafatosamente verdes. o jardim inteiro é por si só um escândalo premeditado, que floresce e festeja no sorriso dos vagalumes e estrelas molhadas, com um teatro de confetes e sons bailando no fio da calçada, agarrando a minha metade do coração e dando língua para a bobinha kim yerim. baleias cantam novamente, o boneco de neve permanece vivo, e os anos de glória ainda correm pelas minhas veias, porque eu queria muito sumir da capital para sucumbir ao peso das lembranças e emergir nos rios interioranos da cidade da vovó, onde nos tomates crescem flores e eu posso fritar e engolir o amarelo das folhas sem precisar discutir com yerim por horas a fio.
meus olhos se esticam até o céu e mergulham no oceano infestado de astros, baleias e flocos de neve inabaláveis, trilhando constelações nas asas de uma borboleta sangrando e babando de fome, ambição, e vontade de plantar um coração inteiro só pra si. ela sabe que precisa da carne e que almeja respirar entre os pássaros e pergaminhos, porque nunca uma única borboleta ousou falar comigo, e elas muito provavelmente me odiaram por toda sua vida.
a brisa suave se arrasta pela minha franja, escovando o cabelo com fios de lua e descansando uma coroa de pétalas e brilhantes no topo da cabeça, como quem pede desculpa por um monte de coisas e por nada ao mesmo tempo. e tudo bem, porque eu já tentei assassinar o sol uma porção de vezes, e eu despertei o ódio da lua vermelha, que nunca fez uma aparição vitalícia desde então. eu poderia perdoar, crer, beijar, querer, mas yerim ainda é minha irmã de carne e coração pelo resto da porra da eternidade inteira. então beijos se transformam em mordidas, eu já não acredito em mais nada do que me disser e, quando foi mesmo que eu troquei de roupa? não consigo lembrar de uma porção de coisas, e talvez esse seja o meu problema, porque EU sou a borboleta de açúcar, e APENAS EU. yerim não pode me salvar, as baleias apodrecem no corpo de um cadáver e eu não vi o inverno chegar pra que tivesse tempo de correr do sol. eu, kim yerim, não sou um anjo. e nunca seria, nem mesmo se quisesse.
é engraçado, não é? como o relógio ressoa. e como cantam as baleias. sabe que ouvi uma borboleta chorar estrelas ontem? e que yerim não ficou quieta nem mesmo quando eu cuspi nas asas dela e engoli todos os brilhantes que encontrei no pólen das flores?
eu não. mas talvez o vento tenha me contado em segredo.
acha mesmo que vale o preço de um milagre?
não. mas ainda acho que consigo barganhar por uma asa.
você não é uma borboleta.
mas pelo menos sou feita de carne.
achei que quisesse ser uma estrela.
arranquei e engoli três flores fritas de tomate.
tic-tac.
ser uma estrela? eu queria MORRER.
tic-tac.
é só tentar beijar o sol.
tic-tac.
alto, coração.
o mais alto.
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ESTRELA DO BORBOLETÁRIO
Fanfickim yerim era sua própria irmã de carne e coração, onde beijos se tornavam mordidas, sangue escorria de suas asas cor de rubi, e a prisioneira mais fiel do inverno coroava o seu cabelo de lua como a bagunça mais terrivelmente linda de todos os tempo...