Eterno Fragmento Alegre de Inverno

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Eterno Fragmento Alegre de Inverno

WINTERVILLE, 1999

Com apenas algumas semanas para a virada do século, uma corrente fria havia acabado de chegar em decorrência do inverno, açoitando nossos rostos com sua brisa nem pouco piedosa. A neve começa a cobrir os telhados das casas e avenidas como um grande cobertor fofo e branco, gerando estresse em alguns moradores novos que vinham do sul, desfazendo todas as idealizações que tinham sobre a perfeição do inverno. Mas a maioria dos habitantes estão acostumados as consequências desse clima. A ponta dos narizes, assim como a dos dedos, fica vermelha como pequenos moranguinhos devido o aumento do fluxo sanguíneo, e os lábios tornam-se sensíveis com o constante contato com o ar atmosférico e ressecam.

Todos estavam acostumados. Menos eu.

Essa estação fria e desumana tira o calor das cores fortes presentes na estação das flores. Remove todos os sentimentos de alegria que transmitem, reprime a emanação dos variados aromas e cala o soneto dos pássaros musicistas arrancando deles a liberdade de cantar. Substitui tudo isso por tons opacos e insensíveis, transmitindo apenas sentimentos tristes de solidão, onde o silêncio se sobrepõe as cantigas voadoras obrigando lhes a permanecerem presas em seus ninhos. E ademais, somos obrigados a nos encasacar com quilos de tecidos para mantermos nossa temperatura corporal. Bem, esses são meus argumentos para desprezar tal estação.

Entretanto, aqui estou, envolvido por quilos de tecidos, fumando maconha sentado no alto duma colina com a neve caindo sobre mim. É contraditório eu sei, mas é o único lugar neste fim de mundo onde consigo colocar meus enfrentamentos internos em ordem. No verão, me atrevo a comparar esse local ao Paraíso, banhado por cores vibrantes intercalando-se entre si, mas no inverno algo na beleza com que os flocos voam do céu até atingirem o solo despertam um interesse especial em mim. E é nesses momentos que acredito que Deus tem compaixão de mim, por pelo menos ter a capacidade de encontrar algo no inferno que aquece meu peito.

Daqui do alto pode-se desfrutar da bela vista de Winterville reluzindo, com a catedral feita de algum tipo de madeira de lei sendo incidida por um grande sistema de iluminação. Considerada o ponto central da cidade logicamente deveria receber total atenção, visto que a maioria dos habitantes são essencialmente católicos, e como é uma noite de domingo recebe iluminação extra para a missa que logo começaria.

Contudo, não é essa construção que ocupa minha visão. Há uma figura de cabelos cor do breu subindo a colina, completamente sozinha e, surpreendentemente não veste nenhum traje típico de inverno, apenas tecidos finos revestem seu corpo. Mesmo com toda essa neve caindo, vejo que ela segura firme em suas mãos uma câmera fotográfica do tipo SLR, uma F5 da Nikon suponho, totalmente concentrada em um mundo interior. Parece não notar minha presença enquanto sobe e a agradeço por isso.

A garota para perto de uma árvores e senta-se sobre o chão nevado, direcionando a câmera em direção a cidade. Ela não expressa nenhuma reação de desconforto ao ter o ar congelante batendo contra sua pele, mas estranhamente parece sentir-se acolhida e ligada a esse lugar, como eu. Por que não está a caminho da igreja com sua família? De todos os lugares da cidade, por que aqui? Será que era capaz de não sentir frio?

Não. É óbvio que ela sente o frio do inverno, só não torna visível. Ela deve interpretá-lo de outra forma, do mesmo modo que o verão é importante para mim e aquece-me como um abraço maternal de uma mãe que nunca tive, o inverno deve significar algo a ela.

Quando me dou conta do que estou fazendo percebo que sobre a caderneta em meu colo há traços de um novo desenho, uma mulher deitada sobre o manto de neve com uma grande lacuna negra no lado esquerdo do peito, no lugar onde deveria estar o coração, e em olho direito descia uma lágrima solitária. Era um desenho dela, da garota da câmera fotográfica.Não sei porque a desenhei, ou o que significa essa fissura no peito e a lágrima solitária. Talvez solidão e vazio.

No momento em que retorno minha visão na verdadeira garota, me espanto, não havia ninguém perto da árvore. Ela simplesmente sumiu. Não era uma alucinação, era? Corro até onde estava para ver se encontro os vestígios de suas pegadas, no entanto, assim como a dona elas desapareceram, não havia nada que comprovasse sua vertiginosa existência. Pode ser a maconha que fumei a minutos atrás a responsável por tal confusão mental, mas, por que sinto essa sensação estranha de realmente ter a visto?
Desvio meus pensamentos dessa situação confusa e verifico o horário no relógio de pulso, são 22:45, ou seja, tinha apenas quinze minutos para voar daqui até minha casa antes que meu tio bêbado chegue do trabalho e me use como saco de bancada.

Assim que chego tomo uma ducha rápida para remover todo os fragmentos desse inverno eterno e me aninho sob as inúmeras camadas de cobertores. Contudo, minha mente insiste em trazê-los de volta, junto com a garota misteriosa, voltando ao momento em que repentinamente surge na colina e desaparece. De alguma forma ela me intriga, escalar um morro em meio a uma pequena nevasca e irresponsavelmente mal agasalhada não é algo que alguém normal faz, foi um ato extrema coragem e irracionalidade. Sendo real ou não, as evidências estão contidas apenas em minha memória, e num pedaço de papel amarelado. Procuro estabelecer um equilíbrio entre o conflito do sono e meus pensamentos energizados, e sem demora a exaustão da vida cai sobre mim, os olhos pesam e o fim das trevas sem lua aparenta estar chegando ao fim. Se eu dormir talvez não lembre do que aconteceu por conta da droga, mas enquanto essa noite durar conservarei ela em minha alma como um eterno fragmento alegre de inverno.

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