O Sangue da Boemia

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I

Tudo já começou com sangue.

"Garçon, um Bloody Mary para essa moça linda aqui do lado!"

Estava fácil demais. Gosto quando as vítimas mesmas se escolhem. Me faz sentir menos culpada. Mais humana.

"Eu nunca te vi por aqui. Primeira vez?" Mentira deslavada. "Sou Roberto, prazer" EU estou sempre aqui. Tem marcas das minhas unhas na bancada desse bar, conheço cada pôster com piadas mais velhas que eu destas paredes, cada marca de infiltração no banheiro, EU É QUE NUNCA TE VI POR AQUI!!! "Prazer, Alice" Não devo me irritar. Homens são assim. Mentem para conseguir o que querem. Isso temos em comum.

Roberto não era exatamente bonito, mas era esforçado. O nariz exageradamente grande era compensado pela barba alinhada e pelo cabelo perfeitamente penteado mesmo para o que parecia se o fim de um dia de trabalho a julgar pela camisa social e maleta de couro. Óculos de aro grosso completava o ar elegante do rapaz. Não que eu estivesse a procura de beleza esta noite.

Mais dois drinks para o meu lado e cinco cervejas para o dele, hora de seguir para o próximo passo, não quero ter que levá-lo nas costas. "Quer continuar essa conversa na minha casa?" Roberto foi mais rápido. Ele realmente está pedindo para morrer. Da quase pena.

"Eu adoraria, mas com esse trânsito da lapa acho que a gente só chega amanhã. Mas podemos ir para meu apê.", eu disse. Não poderia arriscar ir para muito longe.

"Você mora aonde?" "Na Gomes Freire, três quadras daqui só." "Ganhei! Moro na Washington Luiz aqui na esquina. Tu vem comigo." ele disse rindo e segurando minha mão. Você vai me fazer apaixonar Roberto.

Você vê, vampiros como eu ganham a vida eterna. Mas nossas almas ficam presas. Não podemos sair do lugar em que morremos. É uma dádiva e uma maldição. Até o grande Drácula, viveu centenas de anos na sua cidadezinha na transilvânia, foi só se mudar para Londres que definhou até ser caçado como um cervo indefeso. Não quero esse fim. Por isso estou há mais de dez décadas apenas na Lapa. Me alimentando do sangue da Boemia.

Viramos a esquina e de fato, em menos de cinco minutos estávamos de frente ao prédio de Roberto. Um prédio velho, como todos do bairro, de quatro andares que tivemos que subir todos de escada, pois não havia elevador. É bom que exercício abre o apetite.

Típica casa de solteiro, sem muito luxo ou personalidade. A sala dava direto para o quarto e é pra lá que nós fomos. Ele coloca a maleta em cima da escrivaninha e sentamos na cama. Roberto parece nervoso, inquieto. Não parece o mesmo homem confiante que paga drinks para mulheres desconhecidas num bar. Será que ele é virgem? Quanto mais eu me aproximo, mais ele transpira. Que tristeza morrer virgem.

Em minha primeira investida para um beijo, Roberto me afasta e diz que vai guardar os óculos para não atrapalhar. Ele decide guardar na maleta enquanto enquanto eu decido que demorou demais. Gosto de brincar um pouco com a comida antes, mas a fome está falando mais alto. Já estou de pé, com meus dentes e unhas em modo de ataque, quando eu vejo de canto de olho uma fotografia na maleta recém aberta. Minha bisneta???

II

Com as mãos ainda trêmulas seguro a seringa na mão. Não tem volta agora. Fecho os olhos por um segundo para respirar fundo e me viro. Alice está em choque, mas.. Não está olhando para mim? Vou pra cima dela ao mesmo tempo que ela vira os olhos pra mim e pula em cima de mim.

Grito! Caio no chão! Protejo o rosto com as mãos! Sinto ela em cima de mim! Não tenho coragem de abrir os olhos! Vou morrer!

Abro os olhos. Não morri. Ela está com os dentes pontiagudos dela a poucos centímetros dos meus olhos, e com a agulha da minha seringa injetada em seu pescoço. Deu certo! Eu ganhei! Oh Deus, eu ganhei...

"Acho que é justo você saber o motivo de estar aqui", digo assim que ela parece retomar a consciência. Sem resposta, ela ainda deve estar atordoada pela solução. Em mais uns minutos ela começa a mexer o rosto e ver onde está. Em mais uns segundos ela começa a balançar as correntes que a aprisionam na cama. Em apenas um fração de segundos ela começa a gritar.

"Você vai morrer, seu filha da puta!!!", eu já estava preparado para uma reação dessas. "Calma agora, não precisamos ser inimigos", ao invés de me ouvir Alice estava se entretendo em gritar e tentar quebrar as correntes ou a cama. "Guarde suas energias. Ninguém vai conseguir te ouvir. Já não estamos mais na lapa", um olhar de surpresa tão intenso de quando me virei para atacá-la surgiu em seus olhos. "Fique tranquila, eu não pretendo te matar", a expressão de choque deu lugar ao medo notou os tubos sangue ligados ao seu braço. "Muito pelo contrário", acho que não estou ajudando...

A força está reduzida, mas a energia continua ali. Alice está se debatendo inutilmente tem mais de uma hora, vai ter que cansar eventualmente, mas o barulho das correntes já está me deixando doido.

"Vou abrir o jogo com você.", ela para de mexer para me encarar. Era melhor ter ficado calado. "O seu sangue é valioso, você sabe disso. Da a saúde eterna, poder de regerenação, força, para aqueles que o possuírem. Não quero nada disso agora. Mas não é questão de querer, e sim de precisar. E sei de alguém que precisa do seu sangue mais do que tudo. Alguém que o corpo rejeita qualquer outro tipo sanguineo. Alguém que divide o mesmo DNA que você. Carlota, sua bisneta!", sem reação de choque, apenas de atenção. "Sou o neto dela. Carlota é tudo para mim, é a mãe que eu não tive, é quem me deu tudo nessa vida, não posso deixar ela ir por causa de uma leucemia. Prazer, sou seu tetra-neto, gostaria de te encontrar em uma situação melhor, mas infelizmente o destino nos trouxe aqui." Quase um litro de sangue, mais um pouco e vai ser o suficiente. "Depois da notícia da doença da minha avó entrei em depressão profunda, e na depressão comecei a pesquisar sobre a árvore genealógica da família que eu tão pouco sabia. Descobri relatos, matérias de jornal, datando desde o início do século passado, que me levaram a você". Encheu. Me abaixo para trocar o recipiente. Surge uma sombra. Olho para cima. Alice! Depois só escuridão.

III

DIÁRIO DA CIDADE - 20 de abril de 2020

ASSASSINATO NO HOSPITAL SÃO MIGUEL

Carlota Arminda da Siqueira (92), foi encontrada com a garganta perfurada em seu leito nessa madrugada no Hospital São Miguel no centro da cidade. Nenhum dos médicos de plantão dizem ter visto nada de anormal durante o período. Principal suspeita é que o criminoso tenha entrado pela janela, que estava aberta ao ser descoberto o corpo. Roberto Alexandre da Siqueira, único parente vivo da vítima não foi encontrado para dar depoimento sobre o caso.

O Sangue da BoemiaWhere stories live. Discover now