Sem destinatário

188 46 19
                                    

Era noite de sexta. Sentado verticalmente em frente à mesa lotada de tinta e pergaminhos novos, o líder da seita Jiang está encarando um ponto fixo além da caligrafia apressada tingindo o papel amarelado.

Jiang Cheng escrevia uma carta para alguém que mora em Gusu.

Ele se perguntava quais caracteres suas mãos formavam deslizando sobre o papel.

Que ele sentia muito? Que ele também era culpado? Que sentia sua falta? Agradeceria pelo núcleo girando em seu corpo e a energia sentida em seu pulso? Diria que quando se encontraram e se separaram no templo GuanYin, seus olhos diziam muito mais que seus lábios? Que ele não iria mais atrás dele em busca de vingança porque aquela vida era finalmente dele, mesmo que ele tivesse sempre vivido pela dos outros.

Eram todas palavras vazias para quem quer que as lessem. No que um pedido de desculpas mudaria o passado?

Wei WuXian estava bem.

mas estava longe.

Talvez se tivesse sido diferente.

Se ao invés de Wen, tivesse sido Jiang.

Talvez Zidian não pesasse tanto em seu dedo. E as cinzas dos mortos não ultrapassassem o tamanho das urnas.

Tudo o que ele tinha era o que alguém perdeu.

Ele não era Wei WuXian

Por mais que batalhasse, não seria seu nome que estaria entre os melhores. Por mais que odiasse sua impulsividade, era ele quem mais bem seguia o lema de sua seita;

"Tentar o impossível"

Enquanto ele lutava para arrancar o menor e mais ordinário elogio de seus pais, era ele quem só se importaria com o que comeria no jantar.

Por mais que insistisse e suas mãos cansadas formassem calos doloridos e seu corpo se esfalfasse de exaustão, no fim do dia, não era ele quem seu pai cobriria de cuidados e atenção excessiva, para então sua mãe lhe jogar na cara o quanto o filho do servo era melhor que o futuro líder da seita.

Wei não é Jiang.

Mas por mais que ele tentasse com tudo que tinha, Jiang Cheng nunca seria Wei WuXian, então ele teve que ser forte para ser aquilo que esperavam que ele fosse, para erguer outra vez a bandeira que um dia fora consumida pelas chamas e destruição.

As mãos de todos já estavam tão cobertas de sangue que era impossível saber quem havia as manchado. No rosto desesperado de Wei WuXian, quantas daquelas lágrimas eram suas?

Ele poderia ter feito mais? Como sua irmã teria feito? Não havia sido o suficiente? Mas não era ele quem devia ter o maldito controle?

Ele o culpava. Por ter "matado" seus pais, sua irmã e o recente marido dela, por não ter permitido que Jin Ling crescesse com seus pais, por ter o iludido com falsas promessas. Como ele se atrevia a sequer se ajoelhar aos mortos?

Caçar qualquer vestígio do Patriarca Yiling era a forma que havia encontrado para aliviar uma culpa que ele também tinha. Seu egoísmo de não ter o apoiado na ocasião certa. 

ódio era a paz que ele não tinha.

Mesmo assim, ele ainda se lembrava do gosto suave da sopa de raiz de lótus que era sua favorita. Do frio da água encharcando suas roupas quando Wei WuXian o jogava pra dentro do lago e sua risada barulhenta atingia seus ouvidos. Dos faisões que caçavam e das pipas que derrubavam. Dos ferimentos que ele tratava após sua mãe castigá-lo outra vez.

Ele se lembrava de como era ter um irmão.

Mas agora não havia quem soubesse preparar uma sopa tão boa quanto a de sua irmã. A água do lago; o fluxo constante havia levado, as flores de lótus apodreceram e seus ferimentos não podiam mais ser tratados tão facilmente.

Era egoísmo seu querer que aquele tempo retorne? Se ambos tiraram tudo um do outro?

Se Sandu estava em batalha porque Suibian estava embainhada.

Ele quer dizer, mas não o faz. Ele queria falar, ele queria lhe contar o quanto se importava, que dessa vez eles não precisariam terminar sozinhos. E que um orgulho faltava em Yunmeng. Mas no fim, tudo o que ele faz é deixar escapar um suspiro.

Jiang Cheng morreria sufocado com seus pensamentos, pouco a pouco se asfixiando por palavras que não sabia como dizer.

Sozinho sobre a luz bruxuleante de sua mesa, um homem se afoga em palavras que só era capaz de escrever.

E sua carta se juntava a pilha intocada do emaranhado de frases do papel que a cada dia que passava se envelhecia a ponto da tinta perder sua cor.

Sua primeira carta.

"Sinto muito. Quero dizer, eu não sei muito o que sentir."

Talvez sua quinta.

"Está livre para caçar hoje? No seu estado com certeza eu passo você."

"As lótus floresceram no lago esta manhã, talvez você queira vê-las."

"As sementes foram colhidas hoje. Há muitas. Talvez você deva mostrar à Gusu que as melhores são as de Yunmeng."

"É outono. As flores e as sementes estão fora de época. Talvez em uma próxima vez."

Jiang Cheng apenas envolveria a folha rabiscada e jogaria em algum lugar do quarto. A noite chegava ao fim, com nada novo acontecendo.

E no meio daqueles pedaços encaixotados de pergaminhos, havia uma frase quase ilegível que também permaneceria a mesma.

"Caso eles te expulsem aí, você ainda tem um lugar no Píer Lótus."

A semana passaria novamente. Era sexta outra vez. Jiang Cheng escrevia uma carta sem destinatário adicionando a pilha de cartas que nunca foram enviadas para Wei WuXian.

C A R T A SOnde histórias criam vida. Descubra agora