Capítulo II

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O mar preguiçosamente beijou as formosas areias do cais, trazendo consigo o cheiro salgado da maresia. Algumas embarcações atracadas, feitas em séculos passados, antigas, verdadeiras velharias flutuantes, recheadas de canhões também do século passado, faziam qualquer desavisado temer o disparo irresponsável vindo de suas profundezas. Uma ou outra escaler balançava no ritmo das ondas. Uma forte sensação temerosa tocava a alma de quem por ali passasse. Não tardou para se vê que as estruturas, apodrecidas e esquecidas pintavam o quadro daquele bucólico píer da baía de Santos. Ao chão se via o lodo, somado ao mariscos grudados naquelas estruturas que ameaçavam romper as finas camadas de madeira que ainda se mantinham resistentes às intempéries.

Próximo dali, no Porto Paquetá, as bandeiras do império, dispostas nas fachadas dos casarões, frentes ao estuário, balançavam no ritmo do vento que soprava do cais. A frente, como em uma linha reta cortando a cidade, se via uma passagem que fora construída para que, a poucos dias, os pés do imperador D. Pedro I, juntamente de toda a sua comitiva, pudessem pisar. Local este onde havia sido designado para partir rumo às terras longínquas do além mar.

Com o passar dos minutos as lamparinas se apagavam pelas mãos dos escravizados. Um ou outro cativo dava o ar de sua graça pela rua principal, alguns trazendo pães e alimentos, outros, em contramão, levando as imundícies de seus amos de uma noite inteira de excrementos que eram despejados naquelas bacias, jogados à sorte das ruas.

Os minutos passaram e a intensidade de rostos, aos poucos, se revelaram na pouca névoa que cobria a região. O agradável aroma de café tomou o espaço do lugar. Ao longe se ouvia o tilintar das pratarias sendo colocadas à mesa. Logo a fome voraz se apresentou. A esta hora o competente investigador se já levantou. Com as vestes prontas, ele ajeitou sua gravata e saiu em direção a padaria de Seu Osório. Atravessou a rua, cumprimentou um dos escravizados ao longe em sinal, sem qualquer toque ou aperto de mão, afinal, era impossível um fidalgo tocar suas delicadas mãos às dos imundos cativos.

Lá chegou, sentou-se à mesa e, com um sorriso no rosto rogou:

O de sempre! - Seu Osório prontamente atendeu ao chamado.

Sentou-se, cruzou as pernas, abriu o jornal onde leu: "Extra! Extra! O corpo da dona Maria Luciana da Silva será enterrado ao dia de hoje, por volta das 11 horas. Todos os membros da vila estão convidados, exceto os homens casados...", ao ler a notícia D. Ávila esboçou um sorriso. A xícara de café chegou acompanhada de um pão e ovos, deixados pela escravizada que servia os clientes em completo silêncio. Encostou o jornal na mesa a sua frente e, sob o brilho do sol, se deixou consumir pelo prazer do primeiro gole de café que desceu por sua garganta como um manjar dos deuses. O sabor não demorou muito em seu paladar e logo o dono da padaria se aproximou, abordando:

Bom dia D. Ávila, como estás? - Perguntou Seu Osório, com aquele velho pano branco, levemente encardido, disposto sobre seu ombro esquerdo. Um avental que contornava sua proeminente cintura, bigode com as pontas levantadas para cima e de quebra um lápis apoiado sobre sua orelha esquerda. Seu Osório era um típico padeiro de seu tempo. Era considerado um homem simpático por aqueles que apenas conheciam seu sorriso e nada mais. Seu Osório carregava sobre suas costas a responsabilidade de cuidar da casa, das filhas, esposa e escravos. A estes, reservava suas escusas no trato, ao modo que todos lhe rendiam um forte temor, posto que, a poucos meses atrás, uma das mucamas veio a falecer com o sangue a gotejar em suas mãos, após 200 chibatadas.

Neste dia, os demais cativos ficaram apenas a ver a cena. Alguns choravam, outros reprimiam seus desejos primitivos de cólera, com os olhos a arder em fogo de ódio, a fim de parar a visão de dor e gritos daquela infeliz mulher que gemia enquanto seu sangue respingava no rosto de seu dono. Infelizmente, todos se mantiveram silentes, temerosos de serem vítimas do mesmo destino. Sendo assim,  ninguém se atreveu a dizer qualquer palavra, o silêncio fúnebre tomou de conta do lugar antes mesmo da negra morrer.

O sussurro das RosasOnde histórias criam vida. Descubra agora