Prefácio

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Eu só soube de toda a verdade no dia em que minha mãe morreu.

Reconhecendo seu corpo frio, cheio de discursos e juras de amor que nunca serão ditas, sozinho naquela sala do necrotério, chegaram dois meninos de azul, ambos com não mais que quinze anos, e me entregaram uma carta.

Deixei-a na mesinha de cabeceira durante os arranjos do funeral. Chorando para um espelho, minha única companhia naqueles dias, lembro de arrumar a gola da camisa, me vestir com alguma dignidade, e me sentar na cama desarrumada pensando nas últimas coisas que diria para a mulher que me criou e me chamou por filho.

Olhei para o papel dobrado sobre o móvel e o evitei. Qualquer verdade que estourasse na minha testa no segundo em que o lesse poderia esperar. A mulher que me fez o homem que eu sou finalmente descansou. Sentado naquela cama ainda podia me lembrar do calor de sua cabeça sobre meu ombro. Incrível o jeito como nos sentimos vulneráveis e infantis no dia do funeral de nossos pais.

Agradeci os poucos amigos que compareceram ao enterro, sorri como deu, e segurei o choro na hora em que jogaram terra por cima de seu corpo. Sempre fomos sozinhos, minha mãe e eu. Ela nunca me contou sobre meu pai, disse que eu morreria de desgosto se o conhecesse. Ela não tinha irmãos, nem sobrinhos, nem pais. Éramos só nós dois até sua morte e, depois que ela se foi, ganhei uma família inteira.

Abri a carta ainda naquela noite, consumido por uma letárgica solidão. Reconheci sua letra feminina e curvilínea, reconheci até o traço da caneta. Cheirei-a na esperança de sentir seu perfume, fiz carinho no papel cheio de um afeto saudoso e triste, e percorri os olhos pelas palavras.

Me permiti outra lata de cerveja, sentei-me na mesa da cozinha, e então.

Aos poucos as coisas faziam sentido. Eu não era Ulisses Carvalho. Não era um escritor com três livros publicados, uma coluna de jornal e uma indicação ao Jabuti.

Eu era Ulisses Ribeiro. Filho legítimo de um senador que, até àquele dia, era apenas um desses nomes importantes que a gente nunca sabe direito como foi parar no Congresso.

Escapei do luto pelo ódio. A carta revelava o motivo de sermos tão sozinhos no mundo e o porquê de minha mãe ter me criado sem qualquer contato com a família de meu pai.

Obedeci às suas instruções e procurei o banco em busca de um cofre registrado em meu nome. Passei pela porta giratória e senti o suor escorrer frio por dentro da camisa. O gerente me olhou embasbacado quando falei o número da conta e o nome de minha mãe, e percebi sua glote tremer.

Fiquei sozinho numa sala, com medo do que o gerente tinha para mim, e chequei as horas no celular. Duas e trinta e sete de uma tarde de quinta-feira. Esperei que os protocolos fossem cumpridos, agradeci quando me esticaram uma pequena caixa de papelão, e sorri nervoso quando fui deixado sozinho.

Uma fita VHS?

Fui embora frustrado sem saber qual dos meus vizinhos ainda teriam um vídeo cassete para me emprestar. Toquei a campainha da senhora do andar de cima, a mulher mais velha do prédio inteiro.

Menti sobre uma recordação de minha mãe. Compadecida, ela entregou um aparelho empoeirado, disse que não sabia se ainda funcionava, e desci correndo de volta ao meu apartamento.

Enfiei os conectores RCA na minha televisão de tela plana, assoprei o VHS como um cartucho de videogame velho, olhei o cabo de força do vídeo cassete e procurei um adaptador de tomada pela casa. Quando finalmente me sentei para assistir, não era como olhar um filme. Era eu, com cinco ou seis anos, trancado dentro de uma jaula.

No meio do jardim, chorando sozinho. Trancado como um cachorro. Como um leão.

Como um rato.

Não sei como me esqueci daquilo, mas me ver naquela situação, quase vinte e cinco anos depois, me fez lembrar de uma infância que não era a minha. Não era a infância feliz que a minha mãe me deu, não era carinho materno. Automaticamente me lembrei do abandono, das noites frias debaixo do sereno e de um choro magoado de um menino da mesma idade que a minha.

Olhei para os meus punhos e me lembrei dos socos. O Ulisses-criança da fita VHS chorava coçando os olhos, ajoelhado dentro de uma jaula, e então uma menina correu para o meio da cena, apenas de shorts, o peito nu, e cabelos compridos.

Ela abriu minha jaula com uma chave que escondia entre os dedinhos. Engatinhei para fora da prisão e parei de chorar. Ainda me lembro do alívio de ter sido salvo. A filmagem parou, mas a cena prosseguiu pelas minhas memórias. Lembrei como se fosse ontem que a menina abriu a portinhola da jaula de ferro, me deixou sair, e se trancou no meu lugar.

Com os olhinhos inocentes e risonhos, ela fez o sinal do silêncio para mim e me mandou correr.

Algo me diz que corro até hoje.

Aquela fita me trouxe de volta estilhaços de memórias que não formam uma cena completa, e passei boa parte dos dias seguintes com uma sensação mórbida de que o próximo a morrer seria eu.

Digitei o nome do meu falecido pai no Google. Dean, o editor que faz milagres no meu texto, queria levar meu terceiro livro para a Alemanha e me ligava todos os dias. Não fez qualquer menção sobre a recente morte de minha mãe, apenas falava de trabalho.

Depois do terceiro dia de ligações constantes, parei de atendê-lo e me afundei nas pesquisas sobre meu pai. Alemanha poderia esperar, pensei, mas não estava disposto a esperar um só dia para saber por que minha mãe sempre o escondeu.

Achei sua foto numa reportagem velha e percebi as semelhanças inconfundíveis entre nós. A entrada triangular da têmpora, a cor dos cabelos, o formato do nariz. Nunca me achei parecido com minha mãe, pelo contrário, nos gestos e nas palavras em muito nos confundíamos, mas nunca me senti semelhante.

Ao olhar a foto também me lembrei do sorriso de meu pai, como se cada vez que eu descobrisse algo, acessasse uma parte da memória que ainda não descobri o porquê a bloqueei.

Uma ruiva topou comigo no metrô e me pediu desculpas em francês no dia em que fui até a sede paulista do partido que meu pai fundou. Me apresentei para a recepcionista que arregalou os olhos para mim, sem conseguir disfarçar. Por um segundo suspeitei que a menina da jaula fosse ela, mas algo no seu sorriso me dissuadiu da ideia.

Esperei na sala de estar quando ela entrou por uma das portas atrás de sua mesa, apressada, e observei as fotografias. Em todas as fotos, meu pai estava sempre no centro. Rodeado de amigos, numa fotografia que dizia "fundação – 1977", sentado na ponta de uma mesa comprida, cheio de homens ao redor.

Percorri os olhos pelas fotos, tentando identificá-lo em todas, e parei, um pouco confuso, quando achei uma foto em preto e branco com ele agachado no meio de duas crianças.

Não era a menina da jaula. Era eu, com um pouco mais que cinco anos, e um menino um pouco maior. Ao fundo, conseguia ver a mesma jaula de minhas lembranças.

Fiquei naquelas fotografias até que fui chamado para um escritório, no andar de cima. Sentei-me na cadeira que me ofereceram, recusei café e chá, e olhei ao redor.

A chave que a menina tinha entre os dedinhos, da vez em que me libertou de minha prisão, era exposta como uma relíquia dentro de um quadro pendurado na parede.

E, sobre a mesa do escritório, um porta-retratos com todos os fundadores do partido, abraçados como um time de futebol. Meu pai, sempre no meio, segurava uma guia de cachorro.

Na frente deles, quatro crianças ajoelhadas. Não me vi em nenhum daqueles rostos, mas reconheci a menina de cabelos compridos e o menino da outra foto.

Pois foi apenas quando percebi que todas as crianças da foto usavam coleira que desisti de ser atendido. Minha mãe tinha razão, meu pai realmente me dá vergonha.

Peguei aquele porta-retratos, enfiei embaixo da camisa, e nunca mais voltei.

Inimigo Público - Qvia Nominor LeoOnde histórias criam vida. Descubra agora