Arrebol

4 1 0
                                    


O cheiro de sangue, carcaça e cadáveres humanos flutuava pela cidade de Maceió assim como o aroma doce flutua em um bosque de eucaliptos. Caio Brown desejava muito que esta comparação se adequasse ao tipo do odor. Enormes abutres dividiam membros humanos que foram deixados pelos mortos-vivos na estrada e dentro dos veículos destruídos ou virados de ponta-cabeça. Ele cambaleava de forma que parecia um deles, se olhado de longe. Estava cansado. O dia inteiro lutou, correu e não pôde parar para retirar as roupas tingidas no vermelho escurecido do sangue podre.

Mas Caio precisava continuar. Antes que a noite chegasse, precisava estar em casa. Por mais que seu pai não agradasse, era sua única chance chegar até ele para que sobrevivessem juntos. E além dele, Artur, seu primo, também devia estar aguardando-o mesmo depois de tanto tempo. Aliás, Caio se arrependeu de não ter faltado a aula, como desejava. Se houvesse feito isso, não teria ficado preso com um bando de moleques medrosos num colégio. Com certeza estão condenados desde que ele os abandonou ao voltar para casa.

Caio tinha a consciência limpa. É o apocalipse, afinal! E Não era hora de olhar para trás, mas sim de pensar numa maneira urgente de não morrer a caminho de sua missão. "Só mais uma rua", incentivou a si mesmo, "mais uma".

O silêncio tomara este lugar, talvez porque os mortos-vivos o tivessem limpado. Dias atrás, esta era uma rua que não parava mesmo depois das dez da noite, com crianças cheias de energia se envolvendo em confusões. Caio Brown deixou o semblante cair, contemplando o vermelho que agora compunha o asfalto.

Ele chegou à sua casa. Não cria em Deus, muito menos agora, mas sentiu vontade de agradecer a alguma coisa quando viu que a maior parte da rua havia virado cinzas e chamas que ainda ardiam, enquanto a casa de seu pai e a vizinha, de Artur, permaneciam de pé junto a mais outras duas. Ele sentiu mais energia surgir em seus membros e a gastou correndo até lá. Abriu a porta e a luz entrou com ele no ambiente quieto.

— Pai? Artur?

Ninguém. Caio procurou. A casa estava vazia. No chão da sala havia um caderno ensanguentado aberto com algo escrito no meio da página. "Estaremos no hospital pediátrico - Artur", foi o que leu. Ele olhou para sua casa uma ultima vez. Expulsou o sono de si e se ergueu. Estava exausto, mas era hora de continuar.

***

O hospital pediátrico era agora um prédio rosa e verde em ruínas. Caio se agachara para evitar os cadáveres que caminhavam procurando vidas para tragar. Uma pequena horda dividia um cão na estrada, banhado pelo sol poente. Ele procurou fazer o mínimo de barulho possível e entrou no local contornando o campo de visão dos zumbis. Quando não se tem armas de fogo, a melhor tática é a furtividade, evitar o confronto. Caio pulou os janelões quebrados e entrou. Estava escuro e, assim como em todo lugar, um silêncio mortal governava. Ele ligou a lanterna e logo viu uma marreta que os dedos de um cadáver quase não enlaçavam mais. Apanhou e seguiu para os corredores. Talvez não fosse a hora de chamar, já que não sabia se o lugar era seguro, mas Caio não precisou, visto que Artur foi iluminado por sua luz.

— Você conseguiu. — seu primo sussurrou sorridente.

— Este lugar não é seguro, Artur. — Caio avisou baixinho.

— Não tivemos escolha. Seu pai levou um corte feio. Eu precisei pôr em prática tudo que ainda não tinha aprendido na faculdade de Enfermagem.

— Como ele está? — Caio perguntou já caminhando junto ao primo.

— Vai passar desta noite.

Artur o levou para Célio Brown, que mexia a perna direita suturada e enfaixada.

— Pai. — Caio se aproximou. Sentado sobre a maca, Célio olhou para ele com uma careta que falava de sua dor. Depois voltou seu olhar e sua lanterna para a perna.

— E aí. — respondeu, coçando a longa barba. Não era novidade. Caio estava acostumado com isso, já que seu pai o tratou assim desde sempre, isto é, desde que nasceu. Mas sentiu raiva por tanta indiferença. Talvez tivesse a ver com a morte de sua mãe no parto. Sinceramente, ele não queria saber.

— Chegamos aqui há pouco. — Artur entrou — Esperamos você. Onde estava?

— É sempre uma longa história. — Caio deu de ombros — Não podemos ficar aqui.

Enquanto ele colocava a mochila sobre uma mesa e suspirava, Artur ia argumentar quando se ouviu um barulho nos corredores. Grunhidos agudos se repetiam.

— Estão esperando o que?! — Célio perguntou impaciente. Caio o ignorou e seguiu o barulho aterrador. Lá estava o que antes foi uma menina, mastigando uma ratazana que derramava seus últimos mililitros de sangue fresco. Caio olhou para as portas, onde havia mais olhinhos sem íris flutuando na escuridão. Daí apareceram os rostos raivosos do bando de crianças zumbis. Antes que a garota da ratazana grunhisse mais uma vez, Caio destruiu sua cabeça com um único golpe da marreta. O sangue atingiu o teto.

— Bora sair desse lugar. Agora! — Caio ordenou.

— Tio Célio? — Artur chamou e Célio mancou até o corredor. Mais zumbis vieram da rampa que dava na rua. Gente vestida de jaleco e outros que pareciam os pais dos meninos e meninas monstruosos. O trio teve que correr para a escuridão. As lanternas davam visão para que se esquivassem dos zumbis que se esticavam para apanhá-los. Célio era ajudado por Artur enquanto Caio tentava abrir caminho usando a marreta. À frente estava uma sala de cirurgia. Caio abriu e permitiu que entrassem antes dele.

— Que merda! — xingou CaioBrown. Mas antes que respirassem fundo um barulho os chamou. A maca havia searrastado. Caio se virou já erguendo a marreta, mas o alvo era um menino vivo. 

Cadernos Ensanguentados 4: A Terrível Noite de Caio BrownOnde histórias criam vida. Descubra agora