Sobreviventes

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Há florestas lá embaixo? Estava surpreso. Observou o verde cobrir toda superfície ao redor da torre até se perder de vista como um imenso tapete verde. Sua habitação ficava no setor nordeste da torre, a uma altitude aproximada de mil metros. Fooome! Será que ainda consigo caçar? Memórias de caçada estavam esmaecidas, enterradas profundamente na mente do dragão, como memórias da primeira infância. Ele havia vivido a maior parte de sua vida como um deus que não precisava caçar. O alimento, em abundância, era providenciado à casta draconiana. Até mesmo seus próprios servos eram sacrificados em ocasiões especiais do calendário.

Servo balançou a cabeça ao recordar-se daquilo. Procurou uma área limpa entre as vigas metálicas da torre e abriu suas asas. Estava todo dolorido. Fazia tanto tempo que não voava. Será que ainda teria forças?

Sob a luz do sol, e já seco, suas escamas azuladas brilhavam. Sua pelagem branca estava estufada e despenteada. Percorria todo o corpo entre as escamas e a carapaça dura de aparência pedregosa do dorso. Sacudiu as asas, mas hesitou. Era como um pássaro prestes a alçar voo pela primeira vez.

Ele resmungou - Estão duras como gesso!

Como faz falta haver dragões mais jovens, prontos para desafiar os mais velhos num combate até a morte e assumir sua posição de privilégios. Eu não duraria cinco minutos numa luta, mas ia ser bom morrer assim.

Rugiu sentindo o estômago queimar. Vamos lá! Servo atirou-se contra o ar e planou suavemente, desviando-se das vigas até ficar fora do perímetro da torre. Ao aproximar-se da imensa floresta que cobria todo o terreno viu as ruínas de uma das cidades satélites. Costumavam trabalhar dia e noite em função de suprir as necessidades da Torre do Mundo.

Ativou a visão infravermelha de sua lente e conseguiu localizar uma presa. Uma forma bojuda destacou-se em tons amarelos e brancos no meio da floresta predominantemente azul. Antes que a criatura se desse conta, Servo ergueu-a no ar após um voo rasante. Com as patas dianteiras segurou o tronco peludo e cravou os dentes no pescoço. A criatura gruniu, debateu-se e agonizou antes de morrer. Servo ficou surpreso, pois não esperava por aquilo. Mas a fome o dominava. Pousou e devorou a carne com apetite voraz. Os instintos haviam tomado conta do dragão civilizado. Quando saciado, lembrou-se de desligar a visão infravermelha. Olhou para si todo coberto de sangue, para a carcaça da criatura, que nem mais podia identificar e sentiu certo nojo.

Deu para matar a fome, mas isso foi absolutamente selvagem! Me habituei demais à comida processada... Preciso encontrar uma fábrica de processamento de proteínas com urgência!

Havia uma árvore bastante alta ali perto, de onde seria mais fácil alçar voo novamente. Escalou-a com facilidade e dali viu algo, bem distante, que capturou sua atenção. Aquilo lá é fumaça? Fosse o que fosse, podia esperar, ter o estômago cheio causou uma preguiça severa e ficou ali, observando e pensando.

Quantos anos tenho mesmo? Depois dos primeiros cinco mil anos um draco perde a noção.... Também, houve aquele período, cheio de viagens inter estrelares… Todo aquele tempo relativístico deixou tudo nebuloso. Sem falar nos períodos de hibernação.

Com uma vida tão longa, era difícil construir relações duradouras ou memoráveis com aquelas raças de vidas tão curtas...Celestiais, Brinoro, Krivtos, Gruns e etc. Assim, o que mais se aproximava de uma amizade duradoura era sua relação com o computador central da torre. Nele, estavam inseridos modelos holográficos daqueles que com quem teve relações mais próximas, ao longo dos anos. Um avatar se destacava sobre os demais, o da Krivtos chamada Indirani. Servo adotara-a sob sua tutoria, quando ficou órfã, aos sete anos de idade. Indirani viveu duzentos e trinta e dois anos, uma vida longa para os padrões de sua raça, uma das quatro nativas de Crejave. Ela estudou arquitetura, engenharia civil e aeroespacial. Era muito sagaz e tinha um senso de humor estranho, do tipo que não agradava as pessoas, mas que Servo aprendeu a apreciar.

O Último DraconianoOnde histórias criam vida. Descubra agora