capítulo 1

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Estou na casa das minhas duas melhores amigas bebendo o vinho mais barato do mercado e assistindo a clipes de música pop no YouTube, porque hoje é uma sexta-feira à noite no fim de mês e nós somos três lésbicas de vinte e poucos anos
com empregos horríveis. E, bem, é isso que lésbicas de vinte e poucos anos com empregos horríveis fazem no fim do mês. É parte da nossa cultura.

— Desculpa, Camila, mas não vai rolar —Normani grita da cozinha enquanto luta para abrir mais uma garrafa de vinho usando uma faca, porque ninguém sabe onde está o saca-rolhas.

— Mas o Dinah disse que se você for ela vai — eu respondo, quase choramingando.

Normani e Dinah são um casal e também minhas melhores amigas. Na verdade, as duas eram minhas amigas antes de serem um casal, e hoje elas só estão juntas por minha causa. Conheci Normani na faculdade e Dinah no estágio. Em algum momento, esses meus dois mundos colidiram, elas
se conheceram, se pegaram no banheiro de um bar imundo e hoje são praticamente casadas. Elas moram juntas, o que é a versão lésbica do casamento.

— A Dinah só diz isso porque ela quer se livrar da responsabilidade e deixar o peso das decisões sobre os meus ombros — Normani diz com a voz dramática de sempre, voltando para a sala com o vinho finalmente aberto.

— Isso não é cem por cento verdade — Dinah se justifica. — Mas eu realmente não estou em um momento da vida em que posso gastar duzentos reais em um ingresso para o show de uma banda que eu nem conheço!

— Não seja por isso, você pode conhecer agora! — eu digo, empolgada, pegando o controle da TV e digitando "One Direction" na busca do YouTube.
— Camila, você está proibida de abrir o portal das boybands nessa casa! Eu
ainda não bebi o suficiente — Normani protesta.
Mas é tarde demais. Em menos de 3 segundos, o clipe de Steal my girl já
está tocando na TV e, enquanto Normani e Dinah discutem sobre o sumiço do saca-rolhas, eu uso minha taça de vinho como microfone e canto a música que já ouvi um milhão de vezes, pensando que em poucos meses
eu finalmente vou poder ver minha boyband favorita ao vivo.

— Mas você vai sozinha pra
fila do ingresso? Você não tinha um grupo de amigos enorme que gostava dessa banda? Eu lembro que você era da equipe do fã-clube e tudo! É impossível que não exista
ninguém pra ir com você! — Normani comenta, voltando a atenção para mim.

— Eu acho que depois que a banda se separou, meio que todo mundo seguiu em frente com a vida, sei lá. São pessoas que eu não converso há uns seis anos. Eu sei que uma das minhas amigas da época de fã clube não vai poder ir porque o show é no dia do chá de bebê do filho dela. Chá de bebê. Os anos passam muito mais rápido para os héteros.

— Às vezes essa é uma oportunidade para você conhecer novas pessoas, sei lá. Sair da sua zona de conforto, encarar novos desafios... —
Dinah diz como se ela fosse ou um coach ou minha mãe.

É engraçado, mas às vezes é assim que eu me sinto. Nós temos 26 anos (Normani fez 27 mês passado e desde então ela usa "eu já estou beirando os
trinta!!!" como argumento para qualquer coisa), mas na maior parte do tempo eu sinto como se elas
duaa fossem sempre as adultas responsáveis por mim. As duas moram juntas, em um apartamento só delas, cheio de itens de casa descolados, tipo aquelas
borrachinhas coloridas para colocar na haste da taça de vinho e identificar qualborrachinhas coloridas para colocar na haste da taça de vinho e identificar qual copo é de quem. Elas têm números de eletricistas salvos no celular e colecionam os selos do supermercado para trocar por panelas. Elas até têm uma marca
favorita de amaciante!!!

E eu? Aos 26, ainda moro com a minha mãe e sei que o ponto alto do meu ano vai ser assistir ao show de retorno de uma boyband que, quando estava no auge, eu já era velha demais para gostar.
Mas eu amo One Direction e a gente não consegue mandar no coração.

— Eu só quero ir nesse show porque eu tenho uma obrigação moral comigo mesmo, ok? Não é como se eu ainda amasse 1D como amava na época da faculdade — minto, porque ainda amo igual.

— A gente pode te fazer companhia na fila, se você quiser — Dinah diz, se
solidarizando.

— Para de ser doida, Dinah! — Normani grita
— Isso não vai ser uma fila tranquila que nem as de cantora sapatão de MPB que faz show no Sesc! A camila vai dormir na rua. Ela vai passar a
madrugada na fila.

Eu fico em silêncio, coçando meu pescoço e sentindo vergonha das minhas decisões.

— O que eu totalmente respeito e apoio porque você é minha melhor amiga e eu te amo. Mas você sabe, né? Eu já estou beirando os trinta... —
Normani usa seu argumento oficial com a voz mais gentil, ao perceber que seu tom agressivo me assustou um pouco. Ela, mais do que ninguém, sabe como esse é um assunto delicado para mim.

— Tá tudo bem, gente, de verdade. É só uma noite. Eu só preciso garantir meu ingresso e o resto vai dar certo! — respondo com um sorriso amarelo no rosto. ingresso e o resto vai dar certo!
— Sabe, Mila... — normani me puxa da poltrona individual onde estou sentada e me espreme entre ela e Dinah no sofá de dois lugares.
— Desde quando você me chama de Mila? — pergunto, rindo.

— Me deixa ser carinhosa, caralho! — Normani diz, me abraçando — Eu só quero que você tenha uma experiência incrível, independente da música que estiver tocando. Tipo quando eu fugi da escola no segundo ano para ver um pocket show do Rouge num shopping na puta que pariu da Zona Sul.

— Eu já viajei pra três estados diferentes só pra ver a Anavitoria — Dinah completa, porque ela é o tipo de lésbica Anavitoria.

— E eu vou passar uma madrugada inteira sentada em uma calçada para ter certeza que vou conseguir comprar o meu ingresso da turnê de comeback de uma boyband norte-americana — declaro meus planos para o fim de semana em voz alta pela primeira vez e me sinto bem menos ridícula do que achei que me sentiria.
Normani e Dinah continuam me abraçando porque vinho barato faz com que elas fiquem extremamente abraçadoras. A TV continua exibindo clipes do One Direction, um atrás do outro, e nós três ficamos em silêncio assistindo ao vídeo de midnight, É brega demais, eu amo.

— Esse do meio é uma gracinha — Dinah comenta.

— Vai perder a chance de ver o Zayn ao vivo?

— eu provoco, deixando de lado o fato de que o Zayn é o membro mais
insuportável da banda.

— Desculpa, amiga, mas essa eu vou
passar — Dinah me responde sorrindo enquanto vai até a cozinha pegar mais azeitonas para o pratinho de petiscos.
Normani aproveita para ir ao banheiro, fumar um cigarro ou fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
E eu continuo olhando para a TV, cantando sozinha as músicas da melhor banda do mundo.

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