Ela nunca teve medo de mudanças, afinal, a vida dura no bairro onde vivia por diversas vezes lhe fizera se reinventar. O único medo dessa vez era que essa mudança lhe faria encontrar uma antiga inimiga: a solidão. E com essa ela já não sabia lidar muito bem. Pensou em todas vezes que em meio ao caos e aos problemas recorrera ao seu pai ou sua mãe para lhe ajudar, não imaginava como seria a viver sem aquilo. Passaram-se duas noites desde que ela havia ido morar naquele centro urbano. Os pássaros não cantavam ali e nem batia a brisa fresca no final da tarde. O único som que entrava pelas janelas era o dos carros na rua e o único cheiro que adentrava ao apartamento era o de poluição, proveniente da fumaça dos automóveis.
Mas com tudo isso ela podia se adaptar. O que lhe roubou o sono aquelas duas noites foi a preocupação de imaginar como ela agiria quando a necessidade chegasse. Não pensava na financeira, porque graças à promoção que lhe obrigara a ir viver ali, teria todo mês um robusto salário, suficiente para manter-se e ainda ajudar seus pais, que ficaram no interior. Seu medo mesmo era pensar em como seria quando um chuveiro queimasse, ou quando as tomadas dessem um curto, ou pior, quando ela tivesse que lidar com algum animal repugnante como um rato, uma barata, ou um besouro que entrasse pela janela.
No terceiro dia, quando voltava para o prédio após seus exercícios matinais, o porteiro lhe parou dizendo haver uma encomenda. Estranhando, aproximou-se e pegou a caixa, pensando que de seria mais uma para juntar-se à infinidade de caixas que já estavam no seu apartamento. Chegou a cogitar ser alguma que possivelmente esqueceu no caminhão de mudanças, mas logo viu que não. Estava lacrada, mas com uma vedação fácil de romper-se. Carregou consigo pelas escadas, pensando quem poderia ter enviado já que os únicos a saberem seu novo endereço eram seus pais, os funcionários da rede de internet e os profissionais que realizaram a mudança.
Chegando ao seu apartamento, curiosamente resolveu abrir a caixa que estava sem remetente. Quando abriu, para sua surpresa, viu um telefone vermelho, daqueles antigos, com fio, que quase ninguém mais usava. Em baixo dele, uma carta, que trazia em si os seguintes dizeres:
"Em caso de emergência, ligue para esse número: 2820".
Completamente desentendida, ligou imediatamente para descobrir do que se tratava aquilo. Uma voz doce e suave atendeu-lhe com um saudoso "Mas já? Até que foi rápido...".
- Bom dia, é... Esse telefone chegou na portaria do meu prédio pra mim, mas não encomendei nada, acho que foi engano...
- Considere como um presente de boas vindas. Sou um morador do prédio e vi o dia que você chegou! Entrego telefones como esse para todos os moradores que chegam, oferecendo minha amizade.
- Amizade? Ah, o bilhete deu a entender que você seria uma espécie de zelador, ou algo assim.
- Bom, as pessoas hoje em dia tem dificuldade em fazer amizades sinceras, mas eu não desisto. Ofereço sim meus serviços, faço de tudo, mas esse não é o objetivo final, se é que me entende.
- Na verdade não entendo. Mas obrigada de qualquer forma.
Encerrada a ligação, ela pensou. Por horas pensou em como aquilo havia sido estranho, mas sem esperar e sem nem imaginar como tudo poderia tornar-se ainda mais confuso. Nos dias seguintes os problemas começaram aparecer aos montes e ela com medo e falta de confiança no homem curioso do outro lado da linha, começou a tentar dar seu jeito. Passou vagamente por sua cabeça a ideia de ligar e ver se ele podia ajuda-la, mas com receio do desconhecido logo descartou a possibilidade.
Como previsto, o chuveiro foi o primeiro a queimar. Viu na internet um tutorial de como poderia resolver. Fracasso. A água do chuveiro pareceu ainda mais gelada do que antes e passou a tomar banho assim desde então, com a água fria, o que não era seu costume.
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O Telefone Vermelho
Short StoryA liquidez dos últimos dias tem nos feito desconfiar de tudo e todos que podem se aproximar de nós. Costumamos permitir tais aproximações somente quando enxergamos benefícios a serem usufruídos. Esse foi o caso da nova moradora do sétimo andar, que...