O menino dente de leão e a rosa roxa espinhosa. 

  Ilha Melpo, território siren 
 Ano de 437 do mês da cobra. 

  Há muito, muito tempo, numa época em que os dragões eram como animais de estimação e os cânions da Rainha Mãe não passavam de poças d'água, o povo da terra e o povo da água estavam separados, sem saber da existência um do outro.    Vivia no fundo do mar, a Rainha Mãe Olímpia, uma sirena de grande beleza e poder, as lendas dizem que seus cabelos tinham todas as cores do arco íris e que com apenas um chacoalhar dos sinos em seus tornozelos, o mar se ajoelharia e os homens entregaria seus corações a ela, mesmo assim ela sempre foi uma rainha muito amada por seu povo, com sua natureza calma e generosa. 
  A cidade do mar profundo era cheia de beleza e encanto, suas construções eram feitas de corais polidos, grandes pérolas luminescentes e esporos aquáticos iluminavam as ruas escuras, as cidades subaquáticas viviam sempre em festa, porque seu povo era abençoado pela Deusa. 
 Mas um dia isso acabou, por que os humanos vieram. 
 Os sirenos não sabiam, mas os humanos acima d'água estavam em guerra, o homem que dominava o território sob a montanha era um homem muito feroz e sanguinário, num ato de fúria ele abusou e matou a filha do chefe das tribos que ficavam no litoral e isso desencadeou uma campanha que devastou e cobriu de sangue toda a terra por cinco anos. Os corpos dos mortos se amontoavam em enormes pilhas por onde as batalhas aconteciam, muitos deles acabavam sem seu cadáver intacto e eram deixados para apodrecer e servir de comida para os abutres,onde quer que você pisasse naquela amaldiçoada poderia sentir o cheiro de sangue e morte, o chefe da montanha nunca se desculparia e o chefe do litoral nunca aceitaria suas desculpas, mesmo ainda em conflito eles começaram a ter problemas em comum. Certa noite, um velho de aparência ressequida, com dentes podres e uma cabeça careca cheia de manchas escuras começou a circular pelas aldeias do litoral e no dia seguinte, vários dos humanos que moravam lá começaram a aparecer com estranhas manchas roxas pelo corpo sem nenhum motivo aparente. No começo isso foi completamente ignorado, mas com o passar dos dias, aquelas pequenas manchas começaram a crescer e se espalhar pelo corpo soltando um cheiro podre, aqueles humanos começaram a entrar em pânico,um a um eles se tornaram vivos presos em seus corpos apodrecidos, desejando a morte e incapazes de morrer, as peles ficavam roxas como um grande hematoma, seus olhos ficaram cegos e aguados, larvas e moscas decoravam suas carnes como adornos de morte.     E foi nessa época que os humanos da montanha também estavam passando pela mesma situação, os dois lados não podiam mais se matar entre si porque as pessoas que iriam lutar já estavam mortas, eles não sabiam de onde veio, como tratar aquilo e nem o que era, claro que eles iriam apontar os dedos para seus inimigos declarados. 
 E então o chefe da montanha e o chefe do litoral foram e sugeriram um acordo de paz, cada um visando conseguir a cura e então levar a cabeça do seu inimigo para casa, e na encosta da pedra que canta eles se encontraram, mas não estavam sozinhos. Sentado confortavelmente na grande rocha estava o velho, o vento balançando suas roupas esfarrapadas espalhando o cheiro agridoce e pútrido, como o de uma ferida aberta que nunca tinha se curado. Com um cajado de osso na mão ele disse, " tratem seus mortos com respeito, antes de os mandarem para mim. Lavem seus corpos e purifiquem seus espíritos e os mande para minhas águas, só assim essa praga cessará. ". 
 Uma vozinha doce de menina interrompeu a explicação. 
 – Então eles jogaram os corpos no mar? Baba, essa história está muito quebrada,  esses humanos não são tão estúpidos são? 
 Com um sorriso indulgente, a velha anciã apenas suspirou. 
 – Os humanos eram realmente estúpidos na época, o que fortaleceu a crença deles nisso, foi que a doença de fato desapareceu… 
 O pequeno menino de cabelo branco debaixo das sombras das árvores e que tinha se sentado na pedra mais alta bufou particularmente alto, seu rostinho carrancudo mostrava como estava enojado. 
 A velha Baba gostava muito desse pequeno broto, depois de tantos anos o criando ele tinha se tornado uma criança com um espírito heróico e desafiador,e apesar de sua peculiaridade, ele a orgulhava muito. 
 –O que foi Tristan? Tem alguma coisa que gostaria de falar? 
 Todas as crianças sentadas nas pedras ao redor da velha se viraram para olhá-lo, e seu rostinho de bolinho branco corava até as orelhas, mesmo sem olhar ninguém nos olhos, nada o impediria de falar o que pensava. 
  – Mesmo que eles fossem estúpidos, eles não tinham que nos envolver em seus assuntos, agora olha para a gente. 
 Uma menina um tanto mais velha que estava sentada do lado dele e tinha olhos de ametista,  sorriu meio irritada meio achando graça de sua cara de camarão. 
 – Ha! Parece até que nasceu ontem! Sabe muito bem como os humanos são. 
 Ela deu um tapa na nuca do menino com tanta força e ele quase caiu das pedras e morreu. 
 Esfregando a cabeça com uma mão e se apoiando com a outra, Tristan parecia que tinha sido injustiçado, seus olhos que antes pareciam dois rubis de sangue agora eram de um rosa claro cheios de lágrimas, quando ele falou sua voz era lamentável e seus lábios tremiam. 
 –  Baba, Lira está me intimidando. 
 Isso foi uma facada no coração da menina de olhos roxos, aquele moleque que ela e Baba tanto amaram e mimaram tinha usado suas armas mais mortais nela. 
 Por mais que ela fosse dura com ele, fazendo o papel de uma boa irmã mais velha, Lira nunca poderia ir contra ele quando ele agia assim. 
 O hábito de anos não podem ser mudados com facilidade, tão rápida como um raio Lira pegou Tristan nos braços acariciando sua nuca para afastar a dor e fazendo exatamente o que ele queria. Com os dentes cerrados, ela tentou falar com ele como um ser pensante e sensato. 
 –Tristan, deixa ela acabar a história seu cabeça de coco, se ela não acabar e você continuar falando bobagem vamos perder a saída dos caçadoras. 
 As crianças ao redor que estavam assistindo aquilo caíram na gargalhada, e muitos deles tinham olhos cheios de ciúme e má vontade Tristan sempre parecia conseguia fazer as pessoas quererem lhe dar o céu, apenas ele conseguia dobrar a fera que era Lira e deixar ela macia como veludo. Tristan sorriu sem sinal da aparência prejudicada de antes, seus olhos voltando a cor original, parecendo muito satisfeito. 
  Baba que tinha sido ignorada todo esse tempo tinha um sorriso preguiçoso no rosto, mas seus olhos negros ainda eram brilhantes como quando ela tinha só cinqüenta anos. 
 – Eu não vou me alongar muito, eu sei que todos vocês querem ir ver as caçadoras saindo. O final da história eu vou resumir. 
 Depois que os humanos jogaram todos aqueles milhões de cadáveres no mar, a praga sumiu e eles voltaram a lutar entre si. A água do mar foi envenenada e muitos sirenos começaram a adoecer e morrer, os humanos não tinha resolvido seu problema, apenas o jogaram para que outros lidassem. A Rainha Mãe, mesmo sendo muito poderosa,  nem ela tinha um jeito de filtrar toda água do mar e numa tentativa desesperada de salvar seu povo, ela nos deu pernas e nos mandou para viver na superfície. Os sirenos eram orgulhosos e nunca viveriam entre aqueles que tentaram os aniquilar, a Rainha tinha o mesmo pensamento, então ela usou uma magia proibida e transformou em areia e sal todo os humanos, daqui até a praia dos dentes do dragão bebê, deixando vivos apenas aquelas pessoas que viviam muito alto nas montanhas. Mas depois disso, a Rainha Mãe entregou seu bebê para sua amiga de confiança, entrou no mar e desapareceu. 
 – Baba, você conheceu a Rainha Mãe? 
 A velha anciã apenas sorriu, cada músculo de seu rosto mostrava melancolia e cansaço, seu cabelo longo era branco e translúcido como teia de aranha, e isso era a única coisa que mostrava sua idade. Os siren, descendentes dos primeiros sirenos nunca mostraram os sinais da idade em seu corpo, desde o nascimento até a hora de suas mortes seus corpos eram jovens e bonitos, por isso os humanos da montanha nevada achavam que eles eram imortais e muitas vezes os sequestravam para descobrir o segredo, e quando não conseguiam os matavam e comiam suas carnes e bebiam seu sangue, achando que não envelheceriam. Baba era uma das poucas que tinham sobrevivido por tanto tempo, agora eram tempos de paz e ninguém em muito tempo tinha sido levado, muitos tinham até se esquecidos desses tempos sombrios. 
 – Não sou tão velha assim criança. Bom, eu acho que já está quase na hora das caçadoras saírem, acho bom vocês correrem. 
 A velha Baba nem tinha terminado suas palavras e todas as crianças saíram correndo , pulando das rochas que estavam sentadas, levantando poeira como uma manada de elefantes loucos. A velha anciã riu e se levantou para acompanhar quando dois corpos a abraçaram apertado, o impulso quase derrubando os três na água. 
 –Baba, Baba quero sopa de raiz de caranguejo quando eu voltar. 
 –Ela não é sua escrava Tristan. A gente volta daqui a pouco Baba. 
 Tão rápido quanto vieram, eles foram, tudo o que a velha anciã conseguiu ver foram os cabelos pretos curtos de Lira e uma mancha branca que era Tristan correndo tão rápido quanto um raio. Ela podia sentir o quanto menino que ela tinha criado era obstinado, e isso a assustava e orgulhava, ela amava Tristan como amaria seu próprio filho, mas esse menino estava sempre correndo pelas pontes e vitórias-régias sem qualquer cuidado, pulando de bote em bote respingando água nas pessoas inocentes e sonhando em ser um caçador, todas as vezes Lira tinha que tratar as queimaduras de água resmungando sem parar em como ele era inconsequente e irresponsável. Isso aquecida seu coração velho mas também a deixava sempre na expectativa de que alguma coisa iria acontecer em breve, e ela tinha que se preparar, mesmo querendo impedir Tristan de correr por aí e se machucar, Baba confiava em Lira para cuidar dele e depois os problemas que viriam deviam ser resolvidos pelos jovens. 
 O arquipélago de ilhas dos siren era incrivelmente numerosos e próximas entre si, não haviam praias em nenhuma das ilhas, o mar acabava abruptamente contra rochas enormes que rodeavam todas as ilhas como muros gigantescos, impedindo o mar de avançar demais, as árvores frutíferas eram enormes e flora abundante, tão próximas que os moradores conseguiram interligar as ilhas com pontes suspensas pelas árvores feitas de bambus e cipós e as enormes vitórias-régias ao redor, quem olhasse de longe parecia que tudo tinha sido amarrado junto em formato de teia. 
   O cheiro doce das plantas podiam ser sentidos pelos terrenos a quilômetros das ilhas, os siren tinham comida, abrigo, eram maiores em número e mesmo vivendo bem distantes dos terrenos suas vidas eram muito mais satisfatórios, neste paraíso tudo parecia perfeito, só tinha um pequenino problema. 
 Não tinha água potável. 
  Quando os primeiros siren foram deixados na ilha pela Rainha Mãe ainda eram muito dependentes do mar, muitos ainda não tinham aprendido a andar com duas pernas e a ilha tinha o ar muito seco e rançoso, como crianças pequenas que dependiam da mãe ficaram assustados e, eles foram em direção ao mar, subindo nas pedras pontudas, mas quando seus dedos foram lambidos pelas águas , a pele saudável começou a chiar e se desprender dos ossos, músculos e cartilagens não podiam resistir aquela água, se dissolvendo em uma massa gelatinosa de carne. 
  Depois de um tempo uma história se popularizou dizendo que esse era o preço que a Rainha Mãe teve de pagar por usar a magia proibida e matar os humanos, mas ninguém sabe com certeza. 
 Foi mais ou menos nessa época que as caçadoras foram criadas e todas as crianças os adoravam , as siren mais fortes quando faziam 15 anos eram escolhidas e depois de uma série de provas elas poderiam ser caçadoras;era um trabalho muito perigoso, a disposição das ilhas era como a de uma flor gigante no meio do mar, as ilhas perto do centro do arquipélago eram mais juntas e quanto mais você se afastava , mais separadas e distantes entre si elas ficavam. 
 Tristan pulava de pedra em pedra, perigosamente perto da água, as plantas que cresciam preguiçosamente ao redor e tinham sido perturbadas balançavam suavemente com a brisa, os botes estacionados lado a lado cortavam os alfaces d'água, formando uma imagem harmoniosa . Nem todas as crianças eram tão corajosas para correram nas pedras e iam pelo caminho mais seguro,  as casas que tinham sido construídas a vários metros do chão por conta das marés altas pareciam particularmente bonitas hoje, os caminhos entre as casas abarrotados de siren levando as crianças pequenas pelas mãos ou correndo para preparar a comida de suas companheira com grandes cestas de bambu,  tudo tinha um ar aconchegante. 
 Hoje era o dia em que o grupo da ilha Capri mais ao sul, iria pegar água, elas deviam ter acabado de fazer suas preces a Rainha Mãe, depois que os siren se espalharam entre as ilhas, cada ilha tinha um chefe e um grupo de caçadoras que a cada semana ia buscar água, hoje em dia, os grupo saiam uma vez ao mês, mas esse não era realmente o motivo. Os caçadores de Capri eram todas mulheres, como a maioria dos grupos mas elas tinham aceitado um homem, e todos queriam ver quem era o corajoso. 
 Tristan escalou um grande aglomerado de pedras, elas eram muito lisas e escorregadias, suas mãos pequenas quase não podia segurá-lo, mas como ele era baixo precisava de um lugar com boa visibilidade. O portão do píer já estava lotado de crianças e siren que esperavam ansiosamente. Todas as vezes que Tristan subia nas árvores e olhava para baixo, ele via todas essas pessoas e se sentia uma sensação de coceira no coração como se formigas estivessem mordendo e arrancando pequenos pedaços dele , todos os siren que ele conhecia pareciam parentes, cabelos pretos, olhos escuros. Tristan era albino, órfão e tinha um problema de crescimento, olhando para seu corpo pequeno e fofo ninguém acreditaria que ele tinha quase 15 anos. Se ele tivesse uma família, eles seriam parecidos? Os pais dele teriam aqueles olhos? Seu irmão e irmã, seriam albinos também? Ele não sabia. A imagem de um família era vaga e de alguma forma o fazia se sentir sufocado e confuso, ele nunca sentiu que era de alguma forma errado não ter uma família, esse privilégio não era uma coisa que todos poderiam ter e esse arranjo, para Tristan parecia justo. Ele não se achava bom o bastante para ter uma, ou o que fazer com ela. 

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