I - Em alguma dimensão do universo...

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Embora a confusão me cerque neste momento, algo em mim se sente excitado em relembrar e remontar aquela experiência, porque não se tratou de uma qualquer. Foi A experiência. Perturbadora o suficiente para me fazer duvidar da minha lucidez, ela me deixou flashes intrigantes que surgem quando fecho os olhos, sequela do que ela foi capaz de perturbar em mim. Eles são fortes o suficiente para manter vivas as sensações que percorreram meu corpo. É estranho que, ao mesmo tempo em que lembro de pouquíssimo, sou assombrado por detalhes minuciosos. Sei que tudo existiu e talvez nutra a esperança de que aconteça outra vez.


Era uma quinta-feira qualquer e eu havia lançado meu corpo em uma cadeira que devia ter mais tempo do que eu no universo. O toque da madeira era suave e o acento levemente acolchoado. Estava ali sem propósito, apenas descansava de mais um dia tipicamente banal no escritório.

Diante daquela cadeira, vislumbrava se um dia teria o mesmo tempo de existência dela, porque às vezes para continuar a existir é preciso ser como um móvel: um mero adorno e inanimado, sem demonstrar meus sentimentos ou posições sobre temas inquietantes da vida. A existência em sociedade, a vida animal, baseia-se em riscos e eu corria tantos que já temia existir. A bem da verdade é que talvez nunca chegue a viver um terço do tempo de existência dessa cadeira. Como predadora nata, a humanidade teria o poder de me destruir com facilidade. Em segundos, a minha história seria pulverizada e eu seria facilmente esquecido. No escritório me substituiriam no dia seguinte, nas lembranças das pessoas que eu amo, permaneceria por algum tempo, mas muito pouco. Porque o mundo dos vivos é imediatista e se apega pouco as lembranças ou ao passado. Quem se importa? Eu deveria? Mas por que, se a minha é tão comum como as demais? Talvez me faltem amores para perceber que cada história deve ter o seu valor e a minha de certo deveria ter também.

Meus pés estavam apoiados um em cima do outro, empilhados para se esconder do chão frio. Estirado na cadeira, olhava para o teto da casa que me é familiar. Meu lar, onde me refugiava todos os dias do mundo selvagem, do mundo de gente grande em que preciso sorrir e acenar para não ser esmagado pela ambição e ódio dos meus semelhantes. Em casa, estou seguro de todos, exceto de mim, da minha mente inquieta.

Por beber de um tédio contínuo, o teto branco e com detalhes da arquitetura de outro tempo parece novo e explorável. Meus olhos corriam de um lado para o outro, de cima para baixo. Eles acompanhavam a dança das aranhas nas teias longas e quase invisíveis. Parecia interessante olhar para cima e ocupar-me um pouco com esse tempo vazio que insistia em me abraçar. Respiro. Agora estou meio tonto, pareço inalar algo que altera meus sentidos. Meu corpo formiga por inteiro. Estou aqui, mas parece que estou partindo.

Não sei bem como e por que tudo que se sucedeu aconteceu. Só lembro que aos poucos o meu corpo parecia cada vez mais pesado e se distanciando do que imagino ser a energia vital que habita em mim. Talvez esteja me referindo ao que chamamos de espírito ou alma. Tanto faz. Só sei que aquilo que saia da minha carne era o lado transcendente, o meu lado puro e cru. Ele se descolava sem sinais de dores. Ouvia aquele som, antes desconhecido, do intangível afastando-se do tangível. Definitivamente algo estava mudando de lugar.

Descolei.

Uma parte minha permanecia no móvel mais velho do que eu, neste planeta já conhecido. Outra, ascendia violentamente aos ares, num mergulho explosivo quase impossível de fisgar os detalhes até chegar ao topo.

Subia. Subia. Subia. Leve e veloz. Passava por bolhas transparentes sem cheiro. Elas se assemelhavam a algum tipo de plasma. As bolhas eram como um sopro vital, havia energia em camadas finas. Algo brilhava. Elas trocavam energia e experiências comigo. Elas eram quase tão secas e grudentas, quanto as teias de aranha de há pouco. Se agarraram a mim, ao que acredito ser eu no meio da escuridão do cosmos. Eu, agora sem a carne que me tornava visível aos outros seres, subia e furava essas bolhas, uma a uma num estouro silencioso. De repente, tal qual os imãs atraem o aço, colei-me em um outro eu. Ganhei uma cápsula, uma casca para interagir nesse lugar desconhecido.

Notei que estava em um casebre e que não precisava mais respirar. Meu coração não batia. O corpo humano não é vital aqui. Havia confusão em mim, e eu definitivamente estava em alguma parte do universo que nunca imaginei existir. Tenho certeza de que aquilo não fazia parte de qualquer lugar do planeta Terra. Era tudo diferente do que já tinha visto, tanto que não me sinto em condições de encontrar palavras perfeitas capazes de expressar o que estava posto e, menos ainda, de dar a descrição idêntica delas. Tudo que segue são palavras escolhidas com esforço de interpretar para os demais humanos o que aconteceu.

Enquanto observava o casebre ao meu redor, o mar negro e profundo me chamava com sua beleza aterradora. O casebre não tinha paredes propriamente ditas e nem um chão sólido. Ele parecia flutuar num mar preto escuríssimo e espesso. Não havia nada ao redor. Sem sol, lua ou estrelas. Havia pontos de luzes anis, azuis e verdes esmeraldas. As verdes ora piscavam em intervalos longos, ora eram fixas e penetrantes. Cheguei na ponta do precipício e o mar parecia tão profundo, belo e assustador que não espantaria deixar-me envolver e lançar o meu corpo — eu tenho um aqui? — a ele. Talvez quisesse aquela profundidade para meu ser, queria me perder em meio ao líquido escuro. Queria existir de forma infinita e cósmica.

Era escuro, profundo, mas conseguia ver além dos tons pretos. Os detalhes se assemelhava a um berçário de vida marinha cujos seres pareciam existir a anos luz de distância e se movimentavam levemente. Talvez flutuassem, não sei bem. A única coisa que consegui perceber é que este mar era mais profundo do que qualquer abismo que existe na Terra, ele tinha um continuum de vidas, luzes e energias completamente independentes. Nenhuma delas era conhecida por mim.

Desviei a atenção do precipício para o casebre em que estava. Havia um balcão de caixotes improvisados, provavelmente já usados. Mais de perto, notei que a luz agora deixou de ser anil e passou a ter tons alaranjados e amarronzados. Apoiei-me no balcão à espera de que alguém pudesse me atender. Eu devia esperar? Por quê?

Por mais que eu – ser terrestre – existisse fisicamente, nenhum ser naquele lugar era como eu. Eles sabiam exatamente que eu estava esperando alguém ou buscando qualquer sentido lógico para a minha presença ali. Talvez porque nós, seres humanos, somos previsíveis, reféns do medo da solidão. É fácil imaginar que estaríamos esperando alguma coisa, alguma resposta. Eu não fugia à regra. Estaria também deixando transbordar o meu estado de contradição ora tranquilo, ora assombrado?

Meus pensamentos pareciam públicos, rarefeitos. Não podia guardar qualquer segredo e não precisava me comunicar com palavras. A comunicação parecia telepática. Os meus sentimentos e pensamentos eram decifrados por quem me observava de longe. Sentia a presença deles, mesmo sem ver um corpo material. Estamos trocando algo que vem de dentro. Sinto mais um formigamento, deve ser arrepio, algo que me deixa desconfortável.

Desejei companhia. Podia ser de alguém, ou algo que pudesse ver com os meus próprios olhos. Qualquer rosto poderia me salvar do silêncio e da solidão. De repente, um cinzeiro esverdeado surgiu no balcão de caixotes, e nele havia um pedaço de papel branco com três dobras. Abri. Ele era parte de uma folha com pautas azuis gastas de tanto que se havia escrito e apagado. Quase em branco, não fosse pelas marcas do tempo e uso. Li o que estava escrito. Mas o que decodifiquei não estava no idioma que uso para me comunicar com os meus semelhantes na Terra. Eram códigos estranhos a mim, mas naquele instante pareciam lógicos e entendíveis. Números, símbolos e caracteres nunca vistos.

Esquivei para os lados, com interrogações impostas pelo recado direto e curto. Uma paulada. Era seco, sem possibilidade para dualidades. Quase matemático na lógica do 0-1. O silêncio insistia e o casebre permanecia imerso e flutuante nas bordas do mar de escuridão sem ondas e sons.

Num dado momento, surge colado ao meu rosto a representação do que estava escrito na folha rasgada. No entanto, como me assustei, empurrei o que estava diante de mim ao mar negro de plasma. Não ouvi um único grito ou sinal de dor na queda, ele apenas foi engolido pelo escuro enquanto me observava sem piscar e sem dizer qualquer palavra. Aquilo me assustou, talvez preferisse ter escutado um grito, um som de partida, algo que indicasse que aquilo que estava diante de mim tinha vida e era meu semelhante, que era algo meu. Estava morto, ou eu o matei ao lançá-lo no mar negro?

O papel, antes aberto, se fechou no cinzeiro sem que eu precisasse fazer isso. As luzes anis agora formavam uma borda cintilante no casebre. Havia feixes de luz por todos os lados. Abri a nova mensagem e vi o que me perseguia sempre. Senti um aperto na alma, comovido com o que pressentia estar por vir.

Uma luz transbordou dos meus olhos e tive visões de uma Terra tão diferente e distante daquela em que vivia. Meu cotidiano banal já não existia, menos ainda as formas de vida dele. Tudo era novo, misterioso. Eu via tudo e me assustava tamanha precisão e beleza de funcionamento. Como uma engrenagem em meio a uma máquina orgânica, tudo era perfeito e funcionava harmoniosamente. Me deixo levar. A paz era onipresente e dali em diante associei o que dizia o papel.

Acho que estava em alguma face do tempo. Agora, já não era dia, tampouco noite. As cores do céu eram intermediárias e indicavam parte do dia e parte da noite. Me encantei. A luz, aos poucos, ia se apagando, e a escuridão engolia tudo, inclusive invadindo o casebre. Eu já não era eu: era parte da escuridão e nela não sabia distinguir o real, o presente, passado, futuro ou a vida da morte. Havia movimento em tudo.

De uma respiração profunda, agora estranhamente necessária, notei que meu corpo fora lançado em queda livre, numa velocidade agressiva, talvez a da luz. Como poderia saber? Tento traduzir para meus semelhantes humanos com base nas invenções e convenções também humanas. A parte de mim que estivera no casebre colou-se novamente àquele corpo estirado na cadeira centenária. Eu estava de volta à vida de sempre. Que agonia! Meu coração pulsava tão forte, meu corpo era uma brasa e meus sentimentos estavam explosivos. Levantei e minhas pernas tremiam, quase não podiam sustentar a minha nova versão tocada pelo desconhecido. Voltei a sentar-me. Que diabos aconteceu? Me perguntava.

Do mar escuro a aquele arranjo de luz eterna que parecia tão infinito e confortável, eu queria ir além. Cobiçava entender mais daquela face de tempo ou espaço, seria àquele um novo mundo? Se sim, o que preciso fazer para voltar? Esse espaço que devo ter visitado, era tão equilibrado, confortável, infinito e pleno. Havia algo que sempre buscávamos na Terra e falhávamos, havia amor infinito para qualquer criatura. Até mesmo as perdas do que se lançara ao abismo eram sempre substituídas por ganhos ainda mais singulares, melhores. A renovação e a gratidão faziam parte de um fluxo infinito que despejava nas almas de quem existisse.

Meus olhos estão dilatados, tudo era turvo e meu corpo ainda estava quente. Não sei mensurar quanto tempo passei naquele lugar. No espelho, notei que o meu corpo devia ter alguns quilos a menos. Não sei se era o peso físico ou da alma que voltou mais leve, embora perturbada.

No meu lado transcendente, havia a certeza de que o que quer que exista nas faces ocultas do tempo de uma vida banal, precisa ser revelada e experimentada mais vezes. Quero mais e quero entender como tudo aconteceu. Perseguia inutilmente a sensação diferente de tempo de quando estava no envolto do mar negro. O que virá a partir de agora?

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⏰ Última atualização: Oct 25 ⏰

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