— A minha mãe amaria você.
— Isso é um convite?
Ele encarou por cinco segundos a garota do outro lado do tabuleiro. Os pensamentos ainda estavam turvos, apesar das cinco horas ali, sentado, bebendo vários copos de água seguidos, ele ainda se perguntava como havia parado ali.
Então seu cérebro fazia um estalo alto, como um chicote dolorido batia no peito. Se lembrava do mundo lá fora. O mundo fora do tabuleiro que se encontrava ali à sua frente. O jogo esperava os dados serem jogados, mas o frio de junho que fazia as janelas uivarem e os dedos tremerem, o lembrava da realidade.
Ele não queria repetir mais uma vez sobre a dor. Em alguma parte da sua adormecida consciência sabia que estava sendo inconveniente com a garota que acabara de conhecer.
Ele queria repetir que estava latejando. Ele queria beber mais um pouco para dar um jeito no ferimento aberto pela sua própria cabeça.
— Claro que não – a garota respondeu rispidamente.
Do outro lado do tabuleiro, a menina aguardava com tanta ansiedade quantos os próprios dados a próxima jogada. Suas mãos iam da boca até sua blusa, tinha mania de roer as unhas quando estava nervosa, mas sabia que era errado, parava de roer quando recebia o lembrete interno de que não deveria estar fazendo aquilo, então escondia as mãos na blusa velha de lã laranja.
A blusa coçava seu pescoço. Ela sabia que estava vermelho, já havia coçado mais de dez vezes nos cinco minutos seguidos em que esperava o garoto fazer alguma coisa no tabuleiro.
A ansiedade a dominava. A coceira e a luta contra o roer de unhas estava longe de acabar.
Roeu as unhas antes de conseguir falar mais alguma coisa.
— Ela acredita que eu deveria sair mais pra ver se eu paro de ser depressiva, mas sabe como é – ela disse jogando as palavras para o alto, o rapaz à sua frente captou poucas delas.
Ela entendeu que ele não havia entendido, mas não era hora de tentar explicar.
Ela se encontrava numa situação peculiar.
Soltou um suspiro longo e melancólico. Quis agarrar o rapaz pela gola do feio moletom da universidade e jogá-lo pela janela.
Ele havia aparecido em seu quarto cinco horas atrás. Os pés tropeçavam em qualquer coisa, chegou a cair no carpete envelhecido do alojamento.
O pó subiu por todo o quarto. O barulho de um rapaz de 1,80 e 70 quilos desabando conseguiu tirá-la do transe em que se encontrava havia meia hora. Os fones estavam no último volume, as orelhas já doíam, chegou a pensar que era um mensageiro divino a alertando para que não usasse fones em alturas tão absurdas.
O rapaz somente repetia um nome.
"Lara? Lara?"
Lara era sua colega de quarto. Elas se conheceram no primeiro dia de aula, ela prometeu um passeio pelo campus e pelas melhores festas, mas Ana negou agradecendo. Não poupou a garota que havia acabado de conhecer, jogou para cima dela o sarcasmo de anos:
— Minha intenção aqui é puramente surto, não quero me divertir, quero ver se desisto logo – ela sorriu sarcasticamente. Lara captou a intenção, mas ignorou. Estava sem paciência com novatos.
Ela estava no último ano, alertou para Ana que não pararia muito no quarto, que ela poderia fazer o que quisesse.
Ana garantiu que não faria nada. Novamente foi ignorada.
E desde então não viu mais a garota. Ficou feliz, tinha o quarto só para ela, e chorava sozinha, sorria ao mesmo tempo em que chorava, pois ali não tinha ninguém para impedi-la de nada.