Capítulo único

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Eu apenas entrei no ônibus.

Era só mais um dia como outro qualquer. Não havia nada de especial. Não deveria haver.

Chuvoso, cinzento, comum. Chato.

Mal dava para ver o que se passava lá fora. O clima frio das ruas contrastava com o abafado do transporte público, causando aquele peculiar embaçado nas janelas.

Poético para alguns, depressivo para outros. Indiferente pra mim.

Eu mal notei tudo isso, para falar a verdade.

Subi no ônibus quase me esquecendo de checar se era o certo, falava ao telefone e me atrapalhava com a enorme mochila pendurada em apenas um de meus ombros — porque apesar de me incomodar com má distribuição do peso, eu achava que era importante parecer mais legal.

Não era.

Além disso, eu segurava alguns outros itens na mão, que no meu caso era uma verdadeira ironia chamar de "mão livre".

Os itens eram uma espécie de lanche improvisado. Desses suicidas que a gente sempre compra dizendo que isso não vai se repetir; escolheremos opções mais saudáveis da próxima vez, afinal foi tudo culpa do atraso. E se ele não puder ser culpado, então qualquer coisa é. Tudo pode servir como justificativa de recompensa ou compensação.

E repetimos o erro na primeira oportunidade. Por que sempre vai haver o amanhã para tentar de novo, certo?

Bom, não posso falar por todo mundo, porém admito: escorreguei o quanto pude em cada um desses pequenos pecados do dia a dia. Agora não vejo mais problema nenhum em assumir isso, não acho que ainda importe. Não preciso fingir mais nada para ninguém.

Paguei a passagem numa mistura singular de malabares com contorcionismo que apenas a correria urbana consegue compreender. Ignorei os olhares mal-humorados e muxoxos resmungados dos pretensos passageiros atrás de mim, que aguardavam sua vez de passar a catraca.

Por que nos acostumamos a achar que isso tudo é tão importante? Por que nos irritamos tão fácil?

O fato é que eu quase nem notei.

Eu estava em imersão nos meus próprios dilemas. Na contida discussão que mantinha ao telefone. Contida, porque ninguém quer se deixar expor em público dessa maneira em sã consciência. Ainda que ninguém ao seu lado seja um conhecido ou tenha qualquer influência na sua vida. Eu pensava nas questões que arrastei comigo até ali e nas que imaginava encontrar quando saísse.

Tudo me importava com muita intensidade. Tudo. Vivia em submersão num mar de futilidades, ansiedades e queixas. Talvez pudesse parecer que ao menos eu vivesse o presente, o momento, mas isso era algo que ficava só na teoria. Na ilusão fica melhor dito.

A rotina de quem cultivava dias frenéticos me impedia de realmente enxergar essas verdades. Sentir e dar atenção às pequenas coisas, essas que são o real sabor e até o sentido da vida.

Vivia num cansaço enorme, sempre matando e nunca apreciando de verdade o tempo. Sempre esperando por um dia seguinte, uma semana, um mês, um ano novo em que tudo melhoraria, tudo se encaixaria e o desgaste sofrido, todo o esforço do agora, faria sentido.

Como se o futuro fosse previsível, como se a vida fosse algo que eu pudesse controlar.

Tudo ao meu redor era aleatório, pouco digno da minha atenção, plano de fundo. Eu não tinha tempo para o transitório.

Eu dizia isso, mas passava meus dias torcendo para que todos os acontecimentos passassem logo.

Eu criticava as pessoas chegadas, familiares e até aqueles que escolhi chamar de amigos sem sentir de fato o significado da palavra. Eu criticava com ainda mais fervor aqueles que apareciam na TV ou tinham algum mínimo reconhecimento em qualquer rede social. Todos estavam facilmente errados e todos deviam ser julgados por isso. Afinal o certo é o certo e o errado é o errado. Mas não eu. Comigo haviam tons de cinza a serem considerados, eu tinha meus motivos, minhas justificativas. Eu era hipócrita pra caramba.

A última viagem [CONTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora