Revisão: julho de 2023, Sobral – CE.
I
Fui acordado pelas gotas caindo do teto. Minha roupa estava encharcada pela água que vazava pela goteira, e eu passei a noite inteira assim e não havia percebido, depois, soube de Carlos que ele tentou me acordar, mas não havia conseguido; mas também, passar setenta e duas horas em alerta não é para qualquer um. Mas eu até já estou me acostumando com isso de ter que ficar três dias acordado e passar doze horas dormindo.
II
Demorou, mas nós conseguimos encontrar nosso refúgio a mais ou menos um mês. No entanto, pela nossa experiência, sabemos que já está passando da hora de nos mudarmos. Já tive uma discussão com o Carlos por causa disso. Eu acho que nós estamos seguros aqui, e ele acha que devemos estar sempre nos mudando. Bem, deixa eu explicar como é o local onde estamos: uma parte de um esgoto velho, com metro e meio de altura, sem saída pelos fundos, já que um desmoronamento só permite que ratos pequenos e baratas passem. Na outra extremidade, outro desmoronamento impede que coisas maiores que um homem adulto entre. A entrada é uma abertura no asfalto, uma cratera que disfarçamos com algum entulho. Quando estamos no interior do túnel que antes abrigava o esgoto, dizemos que temos um teto.
Limpamos tudo o melhor possível para ficarmos mais confortável. Do lado de fora ninguém percebe que aquilo pode ser chamado de lar. Nós colocamos nossas roupas e nossos mantimentos sobre móveis improvisados de caixotes. Temos também um estoque de pilhas, já que vamos levando pilhas para todos os lados. Ainda temos o velho walkman amarelo que que Carlos encontrou; ele está em perfeito estado e não paramos de ouvir a fita Bedtime Stories da Madona. Eu brinco com ele dizendo que vamos queimar a fita.
III
Até que essa loucura toda é boa, de certa forma, para mim e para o Carlos. Assim nós podemos morar juntos e não nos preocupamos com o falso moralismo das outras pessoas. E ele tem sido tão romântico, ele sempre me traz coisas lindas dos lugares onde ficamos, pena que muitas delas temos que deixar para trás quando é preciso.
De repente Carlos entra correndo pela abertura pequena do esgoto.
— Temos que sair agora.
Enquanto empacota as nossas coisas mais necessárias e alguma comida, ele ignora meus questionamentos sobre o porquê de termos que ir, mesmo eu sabendo que se ele está deixando um lugar é porque a vizinhança está ameaçada.
IV
Em 1996 eu morava em São Paulo, e o Carlos veio do Rio de Janeiro para visitar uns parentes. Nós nos conhecemos no hospital, eu era enfermeiro e ele estava acompanhando o tio doente. Quando eu fui mudar a dose de soro do tio ele ficou me encarando, eu sorri e ele soube naquele momento que eu tinha sido fisgado.
As pessoas não acreditam em amor à primeira vista, mas foi isso o que aconteceu conosco. Na primeira oportunidade que ele teve ao me ver sozinho, na semana que esteve no hospital, ele me puxou para perto e me beijou, o beijo mais quente e seguro que eu já dei na vida.
— Vou estar de plantão essa madrugada — eu lhe sussurrei ao ouvido, com os lábios ainda formigando. — Só eu e mais uma enfermeira que adora tirar um cochilo.
Ele adorou a ideia.
Mais tarde naquela noite, quando estávamos sem roupa em um leito desocupado, nós sentimos um tremor e depois vários alarmes dos equipamentos dos quartos dispararam. Corremos primeiro para o leito do tio do Carlos e ele estava caído no chão. Quando nós estávamos ajudando-o a se colocar na cama sentimos outro tremor – e dessa vez muito mais próximo. Quando olhamos pela janela, avistamos vários meteoros caindo, uns perto outros longe. A praça em frente ao hospital tinha fumaça. Algumas casas em frente estavam em chamas.
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Duas histórias de 1996
Short StorySão dois contos que se passam em 1996. Temos monstros, alienígenas e grandes catástrofes.