2 - Epístola

155 18 9
                                    

27 de julho de 1996.

Até parece brincadeira, mas a alegria durou pouco. Logo após nossas fontes terem informado sobre a proposta de Ian e Keith, nós começamos alucinadamente a procurar por respostas mais rápidas ao processo da clonagem.

Os testes iniciais eram promissores, e nós tínhamos certeza de que estávamos fazendo história, iríamos ajudar as pessoas, iriamos prolongar a vida, seria possível acabar com filas de espera por órgãos, com bancos de sangue vazios, e principalmente, para o campo das pesquisas, não seria mais necessário esperar uma eternidade burocrática para podermos colocar as mãos em cobaias humanas, isso porque nós faríamos nossos próprios humanos. Nós seriamos igual a Deus criando Adão!

Mas não se brinca de Deus. E é por isso que hoje eu entendo o motivo de só existir um único deus. As pesquisas estavam dando bons resultados, tínhamos dado passos promissores na genética, decodificado linhas de DNA antes desconhecidas, e entendido como funcionavam todas as teorias da criação das espécies.

Entretanto, estávamos ficando sem tempo, já era novembro de 1994 e nós não tínhamos nada em concreto, nada testado de forma prática. Nenhum experimento tinha sido realizado até então, apenas teorias. E os holandeses já estavam utilizando suas ovelhas para reproduzirem clones. Algumas teorias deles haviam falhado, claro, mas logo eles teriam um clone perfeito como resultado de suas tantas falhas, e nós, nós estávamos certos de que nossos cálculos eram à prova de falhas, afinal os Estados Unidos da América é o país dos acertos, correto?

Infelizmente não.

Lembro do dia com todos os detalhes possíveis, sei que fazia sol, apesar de estar dentro de um laboratório a duzentos metros de profundidade, porque a televisão do segurança no corredor mostrava um jogo dos RedSox, que lembro que terminou o campeonato Americano em terceiro lugar àquele ano – eu estava decepcionado com o nosso time.

Mas o que mais me chamou a atenção foi a chimpanzé que jazia sobre a maca de metal que tínhamos em nosso laboratório. Eu não sei ao certo o motivo de o Dr. Armstrong ter escolhido a chimpanzé, apesar de todos os nossos esforços de testar a clonagem em ratos ou mesmo em uma ovelha. Mas para ser sincero, eu lembro que o Doutor estava muito desanimado com as pesquisas a alguns meses, logo após sua última reunião com os financiadores. No íntimo, eu penso que a chimpanzé seria uma forma de mostrar ao mundo uma forma mais humanizada de clonagem, já que se parecem mais fisicamente com o homem do que uma ovelha ou um rato.

Quando entrei na sala, o animal já estava sedado, jazia imóvel, com uma máscara de oxigênio na cara e correias muito firmes nos membros superiores e inferiores. Segundo o que havíamos programado, era para a fecundação ser o mais natural possível, mas para mim, aquilo ali não parecia saudável para o animal. Logo, mais uma vez, discordava da ação do Dr. Armstrong, mas ele era o chefe da equipe, e eu já havia discordado demais com ele em sua sala uma centena de vezes, de certa forma, apesar de algumas coisas saírem de nosso controle, eu não queria perder a oportunidade de toda minha vida, que era a de participar de uma equipe que faria história na ciência.

Mas então a chimpanzé foi fecundada, e a gestação corria bem, na verdade, foi mais que bem, foi perfeito, quando o pequeno bebê nasceu, todos nós estávamos empolgados, esperamos muito por aquele dia. Demos a ele o nome de Charles, em homenagem à Darwin.

Nós estávamos à frente dos holandeses. Estávamos para mostrar ao mundo os avanços da genética e o que eles significavam.

Entretanto, Charles se mostrou um bebê inquieto, foi em janeiro deste ano que tudo começou, ele estava com quase oito meses e não havia desenvolvido o esperado. Ele tinha que ficar de quarentena em um cubículo de vidro reforçado, pois seu comportamento violento havia machucado pessoas da nossa equipe. A Dra. Pamella e o Dr. Denis tiveram ferimentos profundos e morreram porque haviam contraído raiva, segundo todos os resultados médicos. Nossos exames não davam resultado diferente, mas o pequeno Charles não tinha raiva, então, descartamos a hipótese de ele ter transmitido o mal aos doutores.

A câmara de contenção do bebê chimpanzé ficava imunda a cada dia mais, e nós não conseguíamos limpá-la. O animal era muito agressivo, e nós já estávamos decididos a pôr um fim em sua curta vida.

No dia 12 de março de 1996 nós finalmente decidimos que a forma mais eficaz e rápida de tirar a vida do pequeno animal era um dardo com overdose de tranquilizante, já que as demais tentativas de sedar o animal se mostraram inúteis, e pelos nossos cálculos, qualquer overdose o mataria. Quando o pequenino jazia sem respiração no meio do cubículo, um dos membros da equipe adentrou e checou o pulso do animal; ele estava morto. Parecia que tudo havia acabado. E nós não tínhamos outro espécime, não tínhamos outra linha de pesquisa, nada. Tudo o que tínhamos havia sido investido em Charles, e ele havia fracassado. Na verdade, nós devíamos admitir nosso fracasso.

Quando Oliver saiu do cubículo, informando a condição do animal e reclamando do mal cheiro, seus olhos secretavam sangue, sua boca expelia saliva como se fossem palavras, e ele estava completamente suado. Sua morte foi tão agonizante e dolorosa como a dos nossos amigos, e em 12 dias Oliver já não estava entre nós.

Bem. Esse foi o início, foi onde tudo começou, e eu me sinto culpado por não ter saído da equipe e revelado a todos aqui fora o que estava acontecendo naquele laboratório com mistura de circo de horror.

Não sei como essa coisa se espalha tão rápido, mas eu aconselho a você a ter muito cuidado com as fezes, nunca entre em um local desconhecido sem sua máscara de proteção, não chegue perto de pessoas que demonstram comportamento agitado, muito menos que cuspa de forma demasiada. Esqueça pertences desnecessários e junte-se a nós em King Cove/Alaska, pois em regiões frias os infectados tem uma resposta mais lenta ao vírus, e aqui nós temos abrigo para muitas pessoas, esperamos que você consiga chegar até nós.

Minhas sinceras desculpas por acabar com o nosso planeta.

Dr. Edgar T. Smith, Boston.

Duas histórias de 1996Onde histórias criam vida. Descubra agora