Capítulo 1

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Os ávidos olhos azuis da criança mergulhavam no livro aberto

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Os ávidos olhos azuis da criança mergulhavam no livro aberto. Seus cabelos de ouro caíam em cascata sobre as páginas com símbolos antigos, a única linguagem escrita que lhe fora permitido aprender. A garota, deitada de barriga para baixo, balançava os pés descalços no ar, numa cadência perfeita. Aquela era a calmaria que sempre precedia uma tempestade.

Ao sentir a porta entreabrir-se, a garota ficou alerta, espreitando pelos fios que lhe escudavam o rosto magro. Reconhecendo a forma pequena da irmã mais nova, Hilde sentiu-se segura para prender a mecha de cabelo rebelde atrás da orelha.

A recém-chegada foi sentar-se na sua cama, sem levantar o rosto uma única vez para a irmã. Hilde notou a expressão ausente da mais nova ao levar os dedos trémulos às fivelas dos sapatos. Aquela era a imagem da culpa.

— O que você fez, Millie?

— Eu estava aborrecida. — Millie sacudiu os pés e os sapatos caíram no chão fazendo um pequeno baque.

Hilde levantou-se num salto, deixando-se de joelhos sobre a cama.

— A TV — concluiu sombriamente. A pequena caixa que guardava tanta vida não deixava de as tentar. — Você não se lembra do que ele nos fez da última vez? — Ambas se encolheram com a recordação dolorosa.

— Ele não vai notar que estive no quarto dele. Fui cuidadosa.

— Ele sempre nota! — A face já branca empalideceu com a constatação da condenação certa. — Não. Ele não nos pode encontrar.

Sentindo uma coragem repentina, Hilde desceu da cama e correu para a irmã.

— Os sapatos — alertou Millie, apontando para os acessórios junto à cama.

— Não temos tempo para isso!

— Millicent! Hildegard! — Elas ouviram o ricochete de seus nomes pronunciados à distância, como um trovão. A ira não se abafara na espessura das paredes.

Millie anuiu e seguiu a irmã.

Os pés descalços percorriam o chão frio do cativeiro, na esperança de uma escapatória ilusória. Sabiam muito bem que as trancas nas janelas e nas portas não se desvaneceriam do ar. E não lhes parecia que o velho Vogel se tivesse dado ao desmazelo que abominava. A perfeição requeria disciplina. Era para isso que ele as treinava.

As irmãs arrepiaram-se ao escutar, ao longe, o som duro da madeira contra a parede. Ele havia chegado ao quarto delas. Hilde sabia que a fresta de fuga se tornava cada vez mais estreita. Aquele era o segundo trovão. Um terceiro e o céu desabaria sobre elas.

Millie hesitou quando a irmã a puxou na direção das escadas. O antiquário ficava no piso abaixo, tal como a porta da rua, mas a regra de não pisarem na loja era das mais sagradas. A punição passaria a ser bem pior se elas fossem encontradas lá. E ainda com os pés desprotegidos das impurezas do chão! Mas ela confiava em Hilde, tinha de confiar. Ao segundo puxão, Millie deixou-se levar.

— Vem, aqui — sussurrou a mais velha, abrindo o imponente guarda-roupa.

Depois de andarem aos círculos na loja, aquela se mostrava a única hipótese de um salvamento temporário. Os passos de Friedrich Vogel eram atrasados pelos chinelos largos e pela idade avançada, mas as garotas já sentiam a presença dele no antiquário.

Millie passou por debaixo dos braços estendidos da irmã e adentrou na escuridão cavernosa. Hilde seguiu-lhe o exemplo e fechou as portas diante dos rostos amedrontados.

— Millicent, Hildegard, mostrem que são boas meninas e apareçam.

O velho Vogel encarou a suástica disfarçada na base da estante por que passava. Em preces silenciosas, pediu a seu Deus, Walvater, para iluminar o caminho de suas netas rebeldes.

— O vovô está aqui para ajudar.

A sombra andante do final do corredor roubou, por um segundo, a luz de final de tarde que rompia pelo guarda-roupa adentro. A mais nova das garotas retesou-se, encostando-se na superfície dura atrás de si. Com as mãos atrás das costas, Millie percebeu a existência de duas runas em relevo. A menina detinha uma memória prodigiosa e aquele não era o padrão completo que vira em um dos livros do avô. De modo automático, ela retirou do bolso do vestido a caneta com que sempre andava.

Hilde recriminou mentalmente a irmã ao dar com ela a desenhar num momento daqueles, mas logo percebeu a energia que pulsava das costas do armário a cada novo traçado preciso da mais nova. Mesmo com pouca luz, a terceira runa ficou perfeita, completando a sequência vertical.

As duas irmãs deram as mãos ao sentirem o guarda-roupa estremecer. Ali estava o terceiro trovão.

O relâmpago chegou forte. As crianças Vogel fecharam os olhos com o clarão e foram sugadas para a frente, escorraçadas do único refúgio que haviam encontrado.

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