Conto Único

68 8 4
                                    

Movimento. Fugir de um mesmo momento. Nunca estar por muito tempo. Esse era o segredo. E mais uma vez aquele grito mudo, agudo que trepidava no peito. Suor por todo o corpo. Frio. Sem prazer. Nenhuma paixão. Palavras que pesavam estranhas na boca, no pensamento. A vida seguia vazia há tanto que tal ideia soava alienígena. Era como se visse a cena de lado, de longe. No entanto, nada mais lhe evocava algo da alma gasta. Entidade telespectadora... Cursava os caminhos diários em piloto automático, buscando ao máximo se fazer detalhe, forjando-se à paisagem.

E foi em um pequeno gesto que tudo mudou.

- É esse aqui que você queria?

Até aquele segundo não havia notado o corpo quente ao seu lado. Elevou morosamente o olhar, como se a despertar.

- Hum, oi?

- Desculpa, mas ouvi você perguntando se tinham esse livro aqui. Pode pegar se você ainda quiser. Meio que desisti de comprar, tá um pouco caro pra mim e... Lugares melhores pra ir, coisas melhores pra comprar, sabe como é? – riso meigo, nervoso, meio sem graça. Não que houvesse observado, numa primeira vez.

Quase 500 páginas e pouco mais de 12 horas depois... Chorou. Não pela história, não pelos personagens. Perfeição. Era doce, de riso açucarado e leve feito suspiro que quando bem feito se quebra na mão, se derrete no calor, se mistura ao molhadinho da boca e aquece o coração.

O choro compungido, exaurido, desolado não foi por conta disso. Veio rasgando o peito, a alma, seu mundo em cruel avalanche de sentir pois, em óbvia ironia, só queria ali... Estar. Desejava, beirando angústia, por, do livro, fazer morada; Da história, lembrança. De cada personagem, família. Daquele corpo ali descrito, seu.

Riu. Loucamente. Histericamente. Sufocadamente. Cada riso descontrolado desmantelava algo dentro de si. Pedaços esvaiam, flutuavam, escorregavam, rastejavam para fora daquele peito comprimido; que às pressas fora feito cofre de queijo suíço.

Como uma das histórias mais batidas e recicladas de todos os tempos em especiais de natais, romances água com açúcar, comédias românticas, e o que mais puder imaginar de purpurina, unicórnios saltitantes e arco-íris, lhe afetara tanto? Rapariga popular de beleza natural conhece príncipe soturno, solitário e... Muito humor ácido, personalidades fortes, química na medida certa depois: um final feliz.

Todavia, mal poderia ter imaginado que um único e simples elemento haveria de alterar tudo. Já que, nesse livrinho em particular, temos em vez da rapariga, um rapazola popular, inteligente e que se descobre bissexual por, num arroubo do destino, esbarrar com aquele príncipe soturno, solitário e bem, bem gay. Não deveria fazer diferença, não é mesmo? Mudar a marca de um ingrediente da receita do bolo não muda seu resultado, certo? Pois bem... Fez. Mudou. E foi assim que aquele velho e pesaroso eixo que sustentava seu mundo estéril, inalterado, "tradicional", não estava mais lá. Havia outro agora. Colorido.

Levantou. Olhou no espelho. O que fora até então um ato deliberado, constrito, odioso ocorrera sem registro. Espanto. Pela primeira vez sua imagem não causava apenas ânsia, revolta, falta de ar. Era certo que ainda não reconhecia inteiramente o que via refletido ali. À bem da verdade, nunca reconheceria em completude. Não obstante, ousou pensar que talvez houvesse uma maneira de habitar o próprio corpo, aceitar estar.

Se alguém tinha pensado numa história como aquela, com final feliz... Se pessoas estavam comprando aquele livro... Não seria o primeiro, não seria o último. Não seria só o um livro, seriam muitos outros mais e filmes, séries, jogos. Não seriam só bissexuais, gays, mas transgêneros, transexuais, não binários. Seria uma sigla que começara com poucas letras, mas que agora cada vez mais crescia e abraçava, acolhia, amava mais. E, como é dito por aí, a vida imita a arte ou a arte imita a vida, sei lá. E então seria, por fim, seguro... Sonhar? Imaginar? Acreditar?

Samuel. Rosto que de borrão na multidão rotineira, passou a ter brilho, forma, cor... Paixão? Com o passar dos dias descobriu que aquele corpo antes disforme, e que havia lhe entregue O livro, frequentava a mesma faculdade. Era da turma da sala ao lado. Ironias da vida, não? Quão inesperado não foi quando alguém sentara ao seu lado na mesa; daquele canto perdido do refeitório.

- Ei, terminou o livro? - esbarrada no ombro.

E mais uma vez, um pequeno gesto tudo mudou.

No começo foi difícil. Trabalho hercúleo. Nada sabia sobre conversar; nada sabia sobre interagir. Com o passar do tempo, dos encontros espontâneos, e dos não tão mais espontâneos também... Foi percebendo que, mesmo com todos à sua volta insistindo em dizer o nome que machucava e a marcar muito bem os (A)s, os "meninAs", os "garotAs"... Com ele, não era assim. Ele sempre dizia o SEU nome. O que tinha escolhido para si.

Aprendeu a rir livremente, aprendeu a tocar sem pensar, aprendeu a... Estar. Presente. Por mais que em algumas noites acordasse em pânico, ou por vezes não conseguisse sair por não encontrar nada que pudesse vestir aquele corpo que não sentia todo seu. E em muitas outras ainda quisesse gritar, chorar... O coração fortuitamente ainda estava lá, batia, sentia. Permitiu-se enfim timidamente olhar à sua volta. Conheceu Iaras, Cecílias, Alecs, Carolinas, Eduardos, Victors, Paulos, Rafaéis; conheceu o que para si era muita gente mesmo. E conheceu amizade, entendimento, identificação, representatividade e, finalmente, afeto. Respeito. Aceitação. Pertencimento.

E o Samuel? Ele igualmente estava lá. Numa tarde de primavera, dois peitos arfavam alegremente e, após horas de trabalho forçado, suas pernas gritavam em protesto. Risos. Duas bicicletas jogadas de lado na grama de um parque no meio da cidade. Domingo cheio, cachorros passando, crianças correndo e cheiro de algodão doce. Sentiu uma mão se entrelaçando à sua. Ouviu.

- Sabe, nunca imaginei que dizer pra outro cara "meu menino lindo" seria meu primeiro pensamento ao acordar ou meu último ao ir dormir. Sou um cara que tá apaixonado por outro cara e isso... Não me dá medo. Me deixa feliz, me faz querer rir da minha própria idiotice. Olha só, eu era bi e não sabia? Foda-se. Não me importa o que veio com você quando nasceu. O que me importa é estar com você. Eu respeito você. Eu respeito quem você se diz ser. Nunca questionei, nunca duvidei. Eu enxergo você. Eu vejo você e só você. O que mais quero é... Poder me gabar da sorte que tenho, pois amo o cara mais lindo que já vi. Poder dizer que você é meu e eu sou seu. Poder segurar sua mão, te beijar sem medo e te ajudar a percorrer o caminho que você quiser. E te apoiar a fazer as escolhas que quiser, transformando seu corpo ou não. Sabe, quero ter a escolha de poder renascer todos os dias ao seu lado. Então, quer ser meu namorado?

Pequenos GestosOnde histórias criam vida. Descubra agora