Prefácio.

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Amarílis da Serra não é um lugar para ser visitado.

Não há nada para ver na pequena cidade, não dotada de graça nem por capricho da natureza e tampouco por esforço das obras humanas.

Salvo indicar um bom-o-suficiente e completamente prescindível restaurante, onde as garotas desfilam nos vestidos de verão da modista da Rua das Lojas, ou convidá-lo para tomar um café com uma fatia de queijo, nenhum amarilense se estenderá em defender os méritos da cidade natal para um forasteiro.

Espiada pelas torres da Igreja Matriz, ninguém jamais tomaria conhecimento de sua existência, não fosse ela uma pequena parada na estrada, entre a movimentada capital financeira da região, Rio das Lajes, e Panorama, uma viva cidade que reunia os estudantes e amantes das artes de todo país.

Registros contam que, há mais de um século atrás, a despretensiosa Amarílis surgiu quando uma enorme quantidade de trabalhadores ocupou a região durante a construção da Ponte do Rio Equestres.

Edificados pela alvenaria do menor esforço, os primeiros casebres brotaram como tiririca naquele vale lodoso, sem outra função senão limitar, entre quatro paredes, o cansaço dos homens.

Quando a última pedra sobre assentou ao chão, o povoado, condenado a ruína, abrigava a despedida daqueles homens de tão diferentes origens, cujos caminhos se uniram nas bordas do Rio.

Ninguém imaginava que a alegria anônima daquela noite encontraria seu lugar na história. 

Tudo teria sido diferente se o mestre de obras, José Desdêmono, não houvesse se  despedido mais cedo, por uma forte dor nas costas que certamente era culpa do colchão de palha, sem saber que aquela havia sido sua última visão da luz do dia.

Em um balanço final, o mestre de obras deixou dois filhos de sangue e uma cidade inteira de órfãos.  

Fosse por um ensinamento de ofício, uma palavra de sabedoria em um momento de desespero ou um fumo emprestado, não havia quem não nutrisse ligação de gratidão com o senhor mestre.

Todos concordaram que Seu Zezé deveria ser enterrado ali, frente a ponte que consumira suas últimas energias, para que pudesse contemplar para sempre a beleza de sua obra final.

As amarílis, que cresciam ao pé da serra sem que ninguém cultivasse, eram a única coisa bonita a ser posta sobre o caixão improvisado de ripas do seu Zezé, pois ninguém se dera ao trabalho de plantar flores. Afinal, nenhum homem embeleza um lugar que não ama.

Mas algo mudou depois daquele enterro. 

Seu Zezé não pertencia mais ao mundo que deixara para trás. E nem qualquer um daqueles homens. Sob seu comando, foram fortes o suficiente para vencer o rio, e isso os uniria para sempre.

Aquelas construções, enquadradas pelas ruas de terra pisada, prestes a serem destruídas quando a obra chegasse ao fim, assentaram-se ao chão com o peso daquele fantasma, enraizando seus alicerces duvidosos no inesperado terreno sólido da lembrança daqueles que nos amaram.

E por nascerem sobre este terreno sólido também é que nenhum amarilense deixa de carregar sua cidade como uma ferida aberta no peito, ainda que não se estenda a explicar para um forasteiro o que há de tão importante em uma cidade desprovida de beleza e de grandes feitos.


As Meninas do Quarto AndarOnde histórias criam vida. Descubra agora