Prólogo

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"Ei, na-na-na

Tenho que ficar louco para ficar são

Ei, na-na-na

Me jogo completamente nos dois mundos

Ei, na-na-na

Você não pode me segurar pois sabe que sou um lutador" 

ON - BTS



São Paulo, 22 de Dezembro de 2011.


— Pode entrar, Elisa.

Ouvi o Doutor Solomon responder a minha batida na porta. Cabisbaixa entrei e a fechei atrás de mim, sentando à frente do homem sério por trás da escrivaninha e ao lado direito da minha mãe. Tudo naquela sala era estéril e me dava uma sensação de abandono. Minha pele escura contrastava com o lugar excessivamente claro, como se dissesse ironicamente que eu não combinava com nada ali. Isso era óbvio, eu não estava com problemas mentais, então por que não conseguia me ver longe daquele hospital e das consultas? Por que não podia voltar para casa e ser uma garota normal?

— Você estava agitada na noite passada. O que houve? — ele me encarava inquisitivo e também senti o olhar de minha mãe sobre mim. Ignorando a presença da mulher, eu devolvi o olhar para o doutor fingindo normalidade. Se já sabia a resposta, por que perguntava?

— O Senhor Peres morreu.

— Mas como você soube disso?

Eu engoli em seco. Podia mentir e dizer que só ouvi uma movimentação do lado de fora do quarto ou qualquer coisa parecida mas a enfermeira já havia dado com a língua nos dentes e, se eu não falasse a verdade sobre a minha agitação, seria pior. Precisava ganhar a confiança deles para algum dia sair dali.

— Eu o vi quando viajou para o outro lugar.

Ninguém ficou surpreso com a minha resposta, afinal era por isso que estávamos ali. Me encarando condescendente, Doutor Solomon afirmou:

— Então as alucinações voltaram. Vamos precisar aumentar a sua medicação.

Nesse momento congelei e olhei diretamente para minha mãe pela primeira vez. Ela não demonstrava nenhum sentimento, a maternidade parecia não existir. Muito bem vestida e com a postura impecável, sua superioridade me enojava. Mesmo assim, eu procurei nela qualquer objeção a tudo aquilo mas, como sempre, nenhuma ajuda veio. Voltei a ficar de frente para o doutor, porém meus olhos desviaram para um ponto qualquer no consultório sem focar em coisa alguma, até mesmo porque nada ali chamava a atenção além de mim. Mesmo o doutor, com seus cabelos grisalhos e olhos azuis translúcidos, parecia fazer parte da mobília. Meu pensamento voou longe lembrando da noite anterior e, naquele instante, era como se eu não estivesse sentada no consultório.

Senhor Peres era muito velho. Não sei ao certo quanto, contudo tinha muito mais do que cinco vezes a minha idade. E eu já tinha quatorze anos. Nós ficávamos horas conversando sobre os artistas que ele havia conhecido e da vida como pintor, me deixando fascinada com suas histórias. Mas Senhor Peres não era feliz, há anos sua esquizofrenia tinha piorado o afastando de tudo que mais amava. Quando, na noite anterior, acordei sobressaltada e imediatamente depois fui sugada para o mundo dos mortos, eu sabia que estava indo ao seu encontro.

Reli, para onde eu sempre era levada ao estar perto de qualquer coisa relacionada a morte, era muito diferente do que a maioria de nós imagina. Não existia céu e inferno, apenas um lugar calmo para onde todas as almas iam. De lá eram conduzidas para suas novas jornadas, como se Reli fosse uma estação de trem onde os desencarnados embarcavam em enormes vagões e seguiam para uma das estações. Eu nunca tinha entrado no lugar, talvez por medo de não sair de lá ou de quem pudesse encontrar, então me restringia a acompanhar as almas até o grande portão principal, sempre aberto e com o nome do local escrito acima de forma pomposa. Com o Senhor Peres não foi diferente, assim que cheguei e olhei para o lado, lá estava sua alma, emanando uma felicidade que nunca vi. Na verdade, ninguém nunca ficava feliz ao morrer, porém aquele velho estava, e muito!

Todas as almas possuíam cores, como se aquilo demonstrasse a essência da pessoa sem precisar dizer nada. A do meu amigo era alaranjada como o sol de fim de tarde, quente e exótica, e eu imaginava que a alma de um artista deveria ser exatamente assim. A atmosfera de Reli emanava um silencio sepulcral e só o apito do trem quebrava aquela serenidade. Eu não sabia ao certo como eram as estações ou o trem, contudo Senhor Peres me olhou e sorriu, em seguida deu passos confiantes em direção aquele novo lugar como se já  conhecesse tudo há anos. Eu o vi partir e se perder no vai e vem de desencarnados e imaginei que qualquer um se assustaria com aquela visão mas, na minha mente, já era natural. Quatro anos atrás eu não diria a mesma coisa.

Enquanto observava calmamente a caminhada ao desconhecido de meu velho amigo, algo angustiante me invadiu. O chão se foi e o medo de cair no vazio me fez gritar. Sentia o vento passar por cada célula do corpo, anunciando como eu estava despencando de forma rápida, agonizante. Comecei a me debater, incapaz de abrir os olhos e encarar a amarga realidade, contudo senti mãos envolvendo meu corpo e a confusão me despertou, fazendo o cérebro perceber que estava de volta a prisão psiquiátrica. Duas enfermeiras me seguravam e, lentamente, tudo foi sumindo. Aqueles malditos remédios novamente haviam atrapalhado tudo.

— Senhorita Elisa? — ouvi o doutor dizer ao fundo de uma forma como se já estivesse repetindo aquilo algumas vezes. Eu pisquei e voltei minha atenção para o homem.

— Desculpe, eu só estava pensando no Senhor Peres.

Ele franziu o cenho, como que assimilando o que havia acabado de ouvir, e começou a fazer algumas anotações com sua letra de médico ilegível.

Droga. Era praticamente certeza que aquilo não podia ser bom.

— Doutor?

— Sim?

Respirei fundo, olhei rapidamente para a minha mãe e tomei algumas doses de coragem antes de perguntar para o homem o que vinha me assombrando há dias.

— O natal está chegando... E-eu vou poder ir para casa e ver minha prima? — odiava gaguejar daquela forma demostrando meu nervosismo mas sentia muita falta de Ivana e precisava arriscar.

— Infelizmente, não. — ele despejou as palavras sem qualquer emoção. — Conversei com sua mãe sobre a noite passada e achamos melhor você continuar internada. É para o seu bem.

Ela procurou minha mão esquerda e a apertou com as suas. Eu abaixei a cabeça e não olhei para a mulher. Sabia que encontraria nela apenas a confirmação do "É para o seu bem ".

Algumas lágrimas involuntárias começaram a se formar atrapalhando minha visão. Achava impressionante como todas as coisas ruins que haviam feito comigo até agora vinham acompanhadas daquela frase. Eu assenti e pedi licença para sair, me desvencilhando das mãos de minha mãe e não esperando permissão para ir embora. Nada mais precisava ser dito. Eu tinha perdido a batalha e passaria mais uma data importante na companhia da insanidade. 

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