Prólogo

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Há apenas dois meses, a outra metade de mim partiu; dois meses que eu não sabia ao certo o que era viver. Queria não pensar nisso a todo momento, porém mesmo a minha psicóloga e todos ao meu redor dizendo que a culpa não foi minha, eu ainda me sentia culpada.

Nem mesmo minha moto conseguia me deixar feliz como antes; na verdade, vagar sem rumo pela estrada passou a me causar calafrios. Sempre que eu via um caminhão passar por qualquer lugar, lembrava que minha irmã morreu por causa disso; minha visão ficava turva e, imediatamente, a imagem da Jasminy me contando o que aconteceu invadia meu pensamento. Eu não deveria tê-la mandado embora.

Com tudo o que estava passando, ainda encontrei algo para me manter de pé: meus sobrinhos. Eles eram minha alegria e a forma através da qual eu encontrava forças para viver. Sobreviver.

A última sessão com a psicóloga foi a que mais me fez refletir sobre o andamento da minha vida. Ela me ajudou a compreender, de maneira prática, como eu gostaria de seguir e como estava realmente seguindo.

— Trouxe o que eu pedi? — Minha terapeuta perguntou, assim que me sentei no sofá à sua frente.

— Era quase impossível esquecer, Justine.

Tirei do bolso o papel plastificado e o entreguei a ela, com todo o meu corpo trêmulo. Enquanto ela lia, eu respirava fundo e passava minhas mãos, umas nas outras, enxugando o suor típico dos meus momentos de nervosismo.

— Qual foi o seu sentimento ao ver que não estava cumprindo algumas metas? — Justine me devolveu o papel, sorrindo.

— Fiquei receosa — comecei a responder, mas um nó se formou em minha garganta; pigarreei, antes de continuar. — Fizemos esta lista no intuito de cumpri-la e, no final das contas, não consegui atingir nem o mais simples objetivo.

Respirei fundo, fechei os olhos, e a vi. Luce sorria para mim, usando um vestido azul; sua pele estava levemente bronzeada, e seus cachos soltos caíam sobre seu rosto. Antes que eu pudesse prever, seus lábios se moveram e sua voz ecoou em meu ouvido dizendo: “Ei, está tudo bem!”. Por algum motivo, vê-la em minha mente me acalmou..

— Sei que houve uma reconciliação, mas a briga... A maldita briga... Ainda é difícil falar sobre aquele dia. Eu… não consigo.

Justine estava tentando tirar algo de mim, utilizando diversos recursos de acesso aos meus pensamentos e sentimentos, porém nada me fazia falar sobre aquilo com ninguém. Tudo era difícil e assustador.

— Fique tranquila — minha terapeuta declarou, me fazendo respirar fundo outra vez. — O que acha de fazer uma nova lista com objetivos mais reais e que falem sobre a sua realidade de agora? Isso pode te ajudar. Será sua tarefa pra esta semana.

— Talvez… eu já tenha feito.

Justine me olhou surpresa e perguntou se eu me incomodaria de lhe entregar a lista, caso estivesse comigo. Suspirei, depois peguei meu telefone e tirei a capinha, deixando à mostra um papel todo amassado. Relutante, entreguei a ela.

Minhas mãos estavam trêmulas quando os dedos dela buscaram o papel da minha mão; era comum eu me sentir assim nas sessões de terapia. Minha tensão aumentou a cada segundo que passava, observando Justine ler minha lista com tanta atenção. Meu nervosismo foi tão grande que, em determinado momento, vi minha irmã lendo a lista ao lado da Justine, depois olhando para mim, sorrindo. Ela está contente com o que escrevi?

Como se pudesse ler meu pensamento, a feição da Luce da minha imaginação, e de Justine, mudou de contente para confusa. Aquilo me deixou totalmente sem reação.

— Por que o último item está riscado? — Justine perguntou, ao mesmo tempo em que eu via a Luce perguntando.

Todo o meu corpo estremeceu e um frio estranho percorreu minha espinha. Naquele momento, Justine e Luce se tornaram uma pessoa só, tentando arrancar algo de mim. Eu quis gritar, mas não consegui.

— Luna…

— Não achei importante, depois que reli. Também seria impossível de realizar — respondi da melhor forma que consegui.

— Tudo o que você escreveu é importante. Tudo é possível — minha terapeuta me repreendeu. Ela pegou uma agenda ao seu lado, arrancou uma folha e me entregou com a minha lista. — Reescreva, sem medo, colocando todos os itens. Seja verdadeira consigo mesma.

Peguei os papéis com as mãos ainda trêmulas e suadas, em seguida segurei firme a caneta que ela me entregou. Enquanto eu tentava fazer as palavras serem transcritas para o papel, a caneta teimava em escorregar, então fui obrigada a limpar as palmas no sofá. Quando me lembrei que o móvel era de couro, já havia deixado a marca dos meus dedos; meu rosto esquentou de vergonha.

Notando o que aconteceu, Justine sorriu e me entregou lenços de papel. Diante da sua gentileza, consegui ficar um pouco mais calma. Coisas simples me acalmam.

Quando, enfim, escrevi todos os meus objetivos na lista, me senti realizada, embora a sensação de medo ainda estivesse presente também. Relendo, me dei conta de que havia adicionando novos itens, coisas que eu nem imaginava. A versão final ficou completamente verdadeira comigo mesma, assim como a Justine me pediu.

MINHA LISTA

- CUIDAR DOS MEUS SOBRINHOS E SEMPRE LUTAR POR ELES
- APRESENTAR O JARDIM AOS MEUS SOBRINHOS, NO TEMPO CERTO
- SER LEAL A MIM MESMA E AOS MEUS SENTIMENTOS
- SEGUIR NA MINHA CARREIRA
- SEMPRE CONTAR COM A MINHA IRMÃ
- OUVIR A MINHA IRMÃ. SEMPRE
- ENCONTRAR ALGUÉM (QUEM SABE), MAS ME AMAR EM PRIMEIRO LUGAR

Devolvi a lista atualizada à Justine, e ela ficou ainda mais surpresa diante do que leu; seu semblante demonstrava isso. Eu havia anotado apenas quatro itens na lista anterior, e um deles estava riscado; com certeza eram coisas confusas. Entretanto, na segunda lista, coloquei meus sentimentos em cada linha.

— Você colocou o item que tinha riscado antes?

— Sim, com algo a mais. É o último item. — Engoli em seco ao responder.

— É um item real. Eu diria que é muito real, inclusive. Mas… o que me impressionou, na nova lista, foram os itens que falam sobre sua irmã. Por que os colocou?

— Pra encontrar conforto. Sei que ela está viva em algum lugar. Ela está viva dentro de mim. Seus ensinamentos continuam comigo e, com certeza, outros virão. A Luce nunca desistirá de mim.

Pela primeira vez em muito tempo, tive uma resposta na ponta da língua. Naquele momento, eu a vi novamente. Luce apareceu ao lado de Justine, sorrindo, e isso me trouxe uma sensação de paz. Minha irmã ainda era a minha borboleta azul; nada mais importa além disso.

A sessão havia chegado ao final, e Justine sorriu para mim ao apontar o relógio na parede. Num timing perfeito, ela conseguiu tirar algo de dentro da pessoa fechada que eu era. Depois desse nosso encontro, tudo mudou.

Minha carreira deslanchou, embora eu precisasse conviver com pessoas negativas que, constantemente, me julgavam. Em muitos momentos, pensei em desistir, mas como poderia? Estava na minha lista. Desistir não era uma opção.

Eu sempre me lembrava de que ainda tinha que lutar pelos meus sobrinhos, porque os avós deles queriam sua guarda. Não vou desistir! Eu repetia para mim mesma todos os dias. Eu amava aqueles pequenos seres e prometi à Luce que cuidaria deles. Além disso, este item também estava na minha lista.

Ela por DoisOnde histórias criam vida. Descubra agora