O objeto

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Ele acordou cedo, às seis horas, como sempre fez. Beijou a esposa, tomou o café, comeu o pão. Saiu de casa no mesmo horário de todos os dias, entrou no carro e foi para o trabalho. Distraído com as preocupações de todas as terças-feiras, não viu o pedestre na frente do carro. Seu pé pisou no freio tarde demais, o impacto já havia ocorrido. O carro parou, mas seu coração acelerou, quase saltando do peito. Ele saiu do carro e viu lá, caído, um homem estranho, que não parecia morto apesar de não ter mais vida. Ele se aproximou e observou, próximo a seus pés, distante do corpo do falecido, um pequeno objeto quadrado, um tanto curvo e arredondado, mas ainda assim geometricamente com quatro lados. No meio, se é que poderia se dizer que aquele era o meio, havia um botão avermelhado, mas sem cor, porém destacado no brilho metálico do restante do objeto. E por mais duvidosa que possa ter sido a situação, aquilo chamou mais sua atenção do que o homem jogado no asfalto.

Ele se recordou então que havia atropelado alguém, e se deu conta das consequências que poderiam cair sobre seus ombros. Felizmente, apenas para ele, é claro, a rua estava vazia. Mas não demorou até o som da aproximação de mais um veiculo surgir longe na estrada. Virou-se para entrar de volta em seu carro, mas cancelou o movimento retornando ao curioso objeto que estava no chão. Ele o pegou e guardou no bolso do terno que não se lembrava de estar vestindo.

Acelerou com a culpa no peito, mas nem tanto na mente. A culpa na verdade não era simplesmente pela morte de um desconhecido, mas pela dúvida moral que lhe surgiu. Afinal, percebeu estar mais preocupado em ser pego pelo que fez, do que por ter feito o que fez. Tentava se consolar afirmando para si mesmo que havia sido um acidente, mas ao mesmo tempo se acusava pela indiferença ao morto. E durante sua guerra interior, quando chegou ao estacionamento da empresa, recordou-se de que não apenas havia matado o pobre homem, mas que também lhe roubara. Isso se fosse provado que aquele objeto pertencia ao morto.

Antes de sair do carro, já atrasado para bater seu ponto, ele retirou o objeto do bolso. Estranhamente não se questionou em nenhum momento sobre o que aquilo poderia ser. Sentiu um breve desencargo de consciência, tão forte e enigmático, que seu dedo se moveu quase por si só, apertando o botão.

Edgar acordou cedo, amedrontado pelo som do despertador que tocava todos os dias às seis horas. Beijou a esposa, comeu o pão e tomou o café. Lembrou-se de ter atropelado um homem. Saltou da cadeira, e considerou seriamente que tudo aquilo havia sido um pesadelo. Saiu de casa no mesmo horário de sempre, entrou em seu carro e foi para o trabalho. Distraído com as lembranças de seu sonho extremamente realista, não percebeu o pedestre atravessando a rua. O freio, como sempre, estava atrasado. Edgar se surpreendeu com a repetição quase exata dos acontecimentos que antes pensava serem frutos de um mundo inexistente. Ele abriu a porta e saiu do carro, mas no primeiro passo, pisou em algo.

Ele acordou cedo, assustado tanto com o sonho que pensou ter tido, quanto com o sonho que havia acabado de ter. Questionou-se se era sonho. Beijou a esposa e descobriu que era ainda terça-feira. Tomou o café e comeu o pão enquanto entrava no carro. Saiu minutos antes do horário de sempre. Focado em resolver aquele mistério, parou o carro onde jurava ter atropelado um homem. Percebendo que estava um pouco a frente do lugar onde realmente havia ocorrido o acidente, deu ré. Ele se surpreendeu com o forte impacto na traseira do veículo, e com o levantar das rodas que pareciam passar por cima de um corpo.

Temeu sair do carro, pois sabia o que havia acontecido. Mas com a falta de coragem, abriu a porta e viu o homem morto abaixo das rodas traseiras. Ele ficou horrorizado com a situação, mas não o suficiente para sentir empatia real pelo morto. Procurou na estrada o fatídico objeto e não o encontrou. Desesperou-se ao ouvir um carro se aproximando. Felizmente, apenas para ele, é claro, viu que o estranho objeto estava na mão do morto. Ele o pegou, e diante da luz do carro que se aproximava, apertou o botão.

Acordou às seis horas. Beijou a esposa e não quis beber o café e nem comer o pão, afirmando já estar misteriosamente cheio. Edgar decidiu deixar de lado aquela situação toda sobre objetos contraditórios e atropelamentos. Entrou no carro, pegou outro caminho para o trabalho. As preocupações de todas as terças-feiras não o distraíam. Chegou no horário para trabalhar. Na hora do almoço foi surpreendido por uma ligação apavorante. Devido um vazamento de gás, houve uma explosão que causou um incêndio em sua casa. Chorou pela morte da esposa. Desesperou-se como nunca havia se desesperado, então se lembrou daquele sagrado objeto.

Ele foi, em lágrimas, até o local onde havia atropelado um homem, e ali não havia nada e nem ninguém. Andou pelos arredores, procurou até quase o fim da tarde, ignorando todas as ligações que recebia. Já no crepúsculo alaranjado do dia, ele o encontrou, tanto o objeto quanto o homem que o portava. Nos fundos de um prédio, próximo a um grande e irrelevante caminhão, ele viu o homem que antes havia atropelado. Estava lutando com outro. O outro, com uma faca, matou o adversário, e como quem conquistasse um troféu, pegou o objeto caído no chão. Mas Edgar não poderia permitir que algo tão assombroso e enigmático estivesse nas mãos de um assassino como aquele. Ele acelerou com o carro e atropelou aquele homem tão cheio de si. Desceu, vasculhou o chão, achou o que desejava e apertou aquele milagroso botão como se estivesse ganhando fôlego para uma nova vida.

Acordou antes do despertador. Edgar, em lágrimas, beijou a esposa como nunca havia beijado. Verificou o gás, descobriu o vazamento e por segurança fez a esposa sair de casa, mesmo que isso afetasse o trabalho dela. Ainda assim conseguiu sair de casa no mesmo horário de quase todas as terças-feiras. Decidido a conquistar aquele objeto, por simples necessidade de segurança e estabilidade, atropelou o homem. Pegou sua recompensa no chão e foi trabalhar.

Portando aquilo, ele se sentia seguro. Parecia invulnerável em seu caminhar, com um olhar futurista que não pode ser explicado por palavras. Ao meio-dia teve sua pausa, foi ao estacionamento da empresa, e enquanto se aproximava do carro, tirou do bolso seu amado objeto, admirando-o, reparando nos detalhes que não tinha. Ele se sentiu poderoso, inacessível, como se compartilhasse misteriosas peculiaridades com aquilo. No momento de seu maior deleite, diante de tão grande poder, foi atingido na cabeça por um rigoroso pedaço de ferro. Ele sangrou e caiu, mas não nessa ordem. Em sua última visão, viu uma mulher ofegante, bela e desesperada, pegando o objeto geometricamente questionável, que, no meio, se fosse possível, tinha um botão destacado, que se tivesse cor seria vermelha. Por fim, ele morreu, amaldiçoado e afetuosamente atraído por aquele simples e profano objeto.

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