Meio: o segundo lado que pode ser o primeiro

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O Cruzeiro do Sul abandonou a literalidade de seu nome no céu escuro presenciado naquela terra invés. As estrelas não indicavam noite assim como o Sol tornou-se Lua. Kun veio a aprender com o passar de um tempo paralisado.

Caminhando pelo trajeto de nunca, sentia-se o único morador abraçado pelo ínterim do universo. Observava os mesmos jardins liquidados que brotavam no começo de uma estação primaveril murcha. As casas coloriam-se pelo passar das eras. As ruas eram movimentadas pelo abandono e realidade não existente.

Os raios gelados de um astro morto abraçavam o corpo de Kun quando ele escutou o choro de um recém nascido na casa mais próxima. Alguém tinha alcançado o fim.

Ao voltar para o próprio lar, não era recepcionado com o doce aroma de biscoitos recém tirados do forno, também não escutava a melodia calma tocada na rádio. O cheiro era amargo, sufocante. O som era estridente, perturbador. A casa estava vazia, mas a sensação era como se um batalhão de dezenas ali vivesse dividindo os apertados cômodos.      

Para chegar ao banheiro, precisava passar pela sala escurecida pelas trevas diurnas. Consequentemente, encarava todas as fotografias emolduradas espalhadas pelas paredes e estantes. Tratava-se de rostos conhecidos. Podia sentir o peso de um único em específico: o par de olhos cintilantes envoltos de marcas temporais lhe seguiam pela casa. Eram    expostos numa foto velha, colocada ao canto, significando o início de um ciclo limitado. Ali colocado, era como se o papel absorvesse a alma do velho homem emoldurado. Ele não existia, tanto quanto Kun.

Desviava-se de móveis até chegar no corredor de madeira encerada. Em todos os dias, desde sua chegada, quando por lá passava, Kun percebia detalhes consumidos por um mundo traiçoeiro. Simples apegos de memória desvencilhavam-se de suas mãos e desapareciam.

No banheiro, encarava o novo e límpido espelho acima da pia. Deveria existir um trincado no canto esquerdo que poderia ser o direito. Seus olhos apáticos lembravam-se de tal desconforto visual. O objeto tornou-se liso e jovem, assim como o reflexo que lhe retribuía olhares.

Kun, muito a muito, percebeu seus traços inexistirem. Os lábios voltaram a ser cheios e rosados, as sobrancelhas ganharam vida e o cabelo iluminou-se. Marcas de expressão, as quais condenavam todos os anos, sujeitaram-se a desaparecer. Um dia, havia estado diante de um Kun de vida longa e calejada: neto, filho, marido, pai e avô. Agora, estava de cara com uma alma tão decrescente quanto aquele mundo aparentava ser. Colocava-se diante do seu fim, ou começo.

Poderia ser a morte que tantos temiam. Sentir os ossos e a carne se tornarem fortes e firmes, observar o universo ao seu redor rebobinar histórias para um público condenado, esperar pelo ruim que acontece ao seu redor simultaneamente e acordar, um dia, sem forças para levantar da cama e sem o conhecimento para compreender o porquê do dia lá fora ser tão escuro e quente, mesmo já lhe viveu por anos a fundo.

Entretanto, Kun conhecia o gosto da morte. Já tinha estado diante dela tantas vezes que parecia clichê agora. Sabia que ela se aproximava mais uma vez, mas não estava decidido entre esperar que ela lhe acalentasse nos braços ou apenas fugiria, como diversas vezes o fez. 

Não girou o registro da torneira, sabia que a água não iria cair. Apertou a borda da pia e endireitou a coluna. Observou a imagem que lhe encarava, um garoto tão jovem como ele mesmo. Coçou os olhos, apenas para ter certeza de que o reflexo não faria sua principal função. Diferente da realidade que lhe envolvia, Kun viu água corrente do outro lado.

O rosto jovem lhe observava com certa confusão expressa pela testa franzida e olhos cintilantes familiares. Certamente, não esperava vê-lo logo naquele momento, muito menos tão cedo, ou tarde. Estava tão surpreso quanto Kun. Não temia o que estava prestes a acontecer já que as linhas atemporais do universo decidiram que era momento de entrelaço.

De repente, Kun encarava a si mesmo, novamente. O dia voltou a ser dia; o sol a emanar calor. A casa cheirava a eucalipto e as paredes desbotadas lhe desejaram boas-vindas. O silêncio da sinfonia de pássaros recepcionava-o ao novo, talvez velho, universo.

Soube que estava a salvo. Distante da morte mais uma vez.

Por causa disso, desligou a torneira esquecida aberta.

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