s u e d a

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O anjo negro estendeu as asas de petróleo ao redor da sua amada, aquecendo o pequeno corpo pálido e trêmulo devido à brisa gélida que trazia consigo os primeiros sussurros da noite.

Ao longe, sobre as colinas, a lua estendia seus tentáculos luminosos sobre as nuances de azul que adornavam o céu, espelhando-se nas águas escuras do oceano de estrelas que, lentamente, deslizavam sobre as rochas, quebrando suas singelas ondas no fim do precipício.

- Tu vieste. - ela murmurou, virando o rosto para que pudesse roçar os lábios na pele de porcelana do anjo.

- Sobrevoei muitas alvoradas para encontrar-te de novo, amor.

A moça soltou o ar lentamente dos pulmões, fechando os olhos com força. O anjo viu, com seu olhar de um azul pálido, a lágrima solitária escorrer pela bochecha rosada da sua amada.

- Como pode chamar-me de amor, se nunca me deste provas concretas de tal sentimento? - perguntou, a voz embargando-se mais a cada palavra.

- Amo-te mais que a minha própria vida. És a minha protegida e a dona do meu coração.

- Mas não ama-me o suficiente para me deixar partir. Por que salva-me todas as vezes, se vê o quanto a tua proteção me enche de angústia e me causa mais tristeza?

- Não posso perder a ti também. - murmurou, roçando os lábios em seu pescoço desnudo.

O anjo notou outra lágrima descer pela sua face e sentiu como se a mais afiada faca perfurasse a sua alma.

Ela não sabia o quanto a sua vontade de se destruir o machucava. Sua amada adorava a vida, mas sentia-se inexplicavelmente atraída pela morte. Matava-se mais a cada dia, enchendo-se de álcool até a tampa, adormecendo os seus sentidos e se permitindo sangrar por dentro. As pílulas entorpecentes eram a sua válvula de escape e a bagunça dentro de si já não poderia ser organizada. Seu corpo clamava por um descanso que nem o maior dos sonos humanos poderia lhe proporcionar.

Mas o anjo não conseguia deixá-la ir.

Ele foi condenado a vagar por um mundo sem cor pela eternidade, sem que ninguém pudesse vê-lo ou ajudá-lo. Era o seu castigo pela vida ímpia que levara, quando, na verdade, deveria estar ajudando pessoas. Mal sabia o Todo Poderoso que o maior castigo que lhe fora dado foi perder Ela.

E por vários anos ele andou por esse mundo, debaixo de uma lua que nascia maior a cada dia e de um céu infinito, procurando o fim do mundo, onde talvez encontrasse alguém a quem pertencer para se redimir. Deitava-se no meio de estradas durante a noite e observava as estrelas, navegava em barcos rumo à lugar nenhum e observava as pessoas correndo contra um tempo líquido, sem nunca ser visto.

Ele via amantes desfazendo-se de amor, entregando-se de alma e corpo em prol de um sentimento humano que ainda lhe era estranho.

Quando encontrou aquela garota humana, passou a acompanhá-la para todos os lugares, como sua sombra. Ela clamava silenciosamente por uma presença humana, um toque mais profundo, um par de lábios para beijar. Com o tempo, ele se tornou cada vez mais real, materializando-se diante do desejo de sua mente cansada e solitária.

Sob o luar, trocavam carícias longas e quentes, unidos pelo laço eterno de um amor impossível, mas inevitável. Dançavam em meio às chuvas que castigavam a terra, rodopiando em poças d'água, corriam por estradas tortas e viam o mundo do topo das mais altas montanhas, onde o vento soprava mais forte e o ar tornava-se rarefeito demais para respirar. Andavam sem rumo, deixando que o vento os levasse para qualquer lugar longe das turbulências do mundo. Quando estava frio, o anjo a envolvia no manto quente de suas asas, e eles se amavam sem nenhuma testemunha além dos próprios corações. Bebiam seus gostos, respiravam um ao outro, apaixonando-se mais a cada dia.

O anjo sabia dos segredos mais profundos da sua amada e dos seus pensamentos mais obscuros. Suas almas estavam entrelaçadas e, conforme ela morria lentamente, corroendo-se de dentro para fora, o anjo tornava-se mais fraco e distante, pois também estava morrendo.

Ele prometeu que a protegeria de tudo, mas não conseguiu salvá-la de si mesma. Era um tolo anjo da guarda que se apaixonou por uma humana autodestrutiva.

- Deixa-me partir. - ela suplicou, virando-se e tocando o rosto do seu amado com ambas as mãos, sentindo a textura da sua pele pela última vez.

Uma lágrima de tinta escorreu de um dos olhos do anjo e uma fina rachadura cortou a sua bochecha.

- A amarei pela eternidade, no céu ou no inferno, em qualquer lugar do mundo ou fora dele. Segurarei a tua mão até os cantos mais escuros que se podem existir, somente para beijar-te de novo sob um céu de estrelas.

Ela sorriu fraco, encarando-o com uma expressão distante. No instante seguinte, o seu anjo se transformou em uma nuvem de fumaça que foi levada com o vento, para algum canto além das montanhas, onde os seus olhos não conseguiam acompanhar.

Ela não precisava mais dele.

Ainda de costas, com os pés descalços na grama, a garota autodestrutiva recuou para trás até que o chão sumisse debaixo do seu corpo, permitindo-a mergulhar num abismo escuro, com memórias distantes atropelando-se diante dos seus olhos, e ela se perguntou, em seus últimos instantes de vida, onde se perdeu.

Mas não importava mais. Porque ela finalmente havia se encontrado.

Quando seu corpo mergulhou nas águas salgadas, ela respirou o líquido gelado, permitindo que inundasse os seus pulmões. Um sorriso lentamente se formou em sua face quando se lembrou das palavras do seu anjo, e ela sabia que, de alguma forma, eles se encontrariam novamente.

Acima dela, expandia-se um infinito céu estrelado, e os seus olhos brilharam pela última vez, refletindo o brilho das estrelas.

Deixa-me PartirOnde histórias criam vida. Descubra agora