Uma manhã de fim de inverno em Madrid. Oceania chega ao restaurante de um luxuoso hotel onde, com seus 19 anos, trabalhava como garçonete. Sua energia entusiasmada se destoava do restante dos funcionários.— Olá!
Dois garçons a cumprimentaram baixo, de modo que ela não os ouviu.
– Olá, tudo bem? Ninguém me responde – ela riu, enquanto entrava devagar e tirava o casaco. – Bom... suponho que estejam bem.
– E você como está? – perguntou uma outra colega com mais animação. Oceania pendurou o casaco em uma cadeira.
– Muito bem – respondeu, e em seguida tocou a nuca. – Um pouco travada aqui desde ontem, não sei por quê... mas bom, já vai passar.
– Quer começar limpando a mesa três? – a colega ignorou o comentário e mudou o assunto.
Agora com o longo cabelo cor de chocolate preso em um rabo de cavalo, Oceania limpava. Ao seu lado estava Marisol, uma colega um pouco mais velha, de cabelos dourados ondulados e uma aparência cansada, assistindo-a como se sentisse que precisasse de assistência.
A porta da frente se abre. Marisol levantou o olhar e o que viu lhe causou certo temor. Oceania seguiu com sua tarefa sem perceber nada.
– Oceania – Marisol chamou-lhe a atenção. Oceania levantou o olhar. Entra Leonor, uma mulher atraente de 34 anos (mas que aparentava ter mais), cabelos louros levemente ondulados de comprimento médio e grandes olhos azuis. Sempre impecável para ir ao trabalho na empresa de calçados de sua família, com uma saia preta, uma blusa rosa clara com um casaco de pele falsa por cima, salto agulha e bolsa gucci... e muito em breve, seria a vez de Oceania. Sem ter uma boa relação com o pai, ao menos uma vaga para Oceania na empresa era uma coisa que Leonor tinha como garantida. Todos envolta a encaram, alguns com admiração, outros com inveja, outros com medo.
– O que será que quer dessa vez? – resmungou Marisol. Oceania ignorou o comentário, deixou o pano sobre a mesa e foi imediatamente ao encontro de Leonor, que estava de costas usando o celular. Quando percebeu que Oceania estava atrás dela, ela se virou. Em sua outra mão havia um livro.
– Esqueceu seu livro – disse.
Oceania pegou e olhou o livro, que estava usando como base de estudo para seu curso de Administração de Empresa. Levantando o olhar para Leonor, ela não entendia o porquê daquilo.
– Eu esqueci?
– Achou que eu não fosse notar? Sei muito bem que passa a metade do seu dia aqui trabalhando... e a outra metade tocando e pintando. De agora em diante, além de estudar em casa, te recomendo fazê-lo aqui mesmo, durante o seu intervalo. E sabe o que mais? Se for para voltar e passar mais tempo com seus passatempos estúpidos ao invés de focar no que realmente é importante... é melhor nem voltar.
Oceania baixou o olhar por um instante.
– Leonor, eu passo metade do meu dia trabalhando, você passa o dia inteiro – argumentou. – É claro que quando chegar em casa vai encontrar algumas partituras e pincéis espalhados... eu já terminei com as minhas obrigações e aproveito o meu tempo livre.
Farta do assunto, Leonor abriu a porta e se foi, deixando Oceania com o livro. Com o olhar baixo e sem a energia de antes, ela se aproximou do balcão.
– Você está bem? – perguntou Marisol. – E esse livro?
– Não é nada – Oceania respondeu sem ocultar que estava aborrecida. – Continue trabalhando antes que te mandem embora.
Marisol suspirou.
– Ser conhecida da amiga do patrão não é fácil.
E ser sua colega de apartamento era ainda pior. Oceania deu de ombros.
– Pelo menos hoje saio mais cedo.
Naquele dia, Oceania tinha marcada sua primeira consulta no ginecologista, com um homem já de idade, o Dr. Muñoz. Não porque sentisse que precisasse, simplesmente porque achava que havia chegado a hora... e Leonor, obcecada com saúde, tivera seu papel na história. Oceania não havia tido muitos namorados até o momento, na verdade apenas um, e já fazia alguns meses. Sentada em uma cadeira, ela tentava ler o livro, tão tedioso quanto aquela sala de espera, mas sua ansiedade a impedia. Desistindo, ela olhou em volta – haviam quatro pessoas sentadas esperando, todas bem mais velhas... até que uma jovem de 20 e tantos anos passou chamando-lhe a atenção. De cabelos louros até a altura dos ombros, não usava traje de doutora. Dirigindo-se à recepção, ela conversa com a recepcionista, uma senhora, de modo que dava para notar que se conheciam. Logo, a recepcionista lhe entregou alguns papéis e a mesma dirigiu-se ao corredor rumo à uma sala. Relutando um pouco, Oceania se levantou e foi até a sala, batendo de leve na porta aberta.
– Com licença.
Em uma mesa lendo os papéis, a jovem levantou o olhar, com uma certa expressão de surpresa.
– Sim?
– Trabalha com o Dr. Muñoz?
– Não, mas... do que precisa? Como posso ajudá-la?
Tímida, Oceania entrou.
– Eu... eu vou ser examinada pelo Doutor...
A jovem deu um leve sorriso e voltou a olhar para os papéis.
– Não se preocupe, costuma demorar um pouco mas logo irá atendê-la.
Um pouco mais à vontade, Oceania sentou-se em um pequeno sofá próximo à mesa, as mãos juntas.
– E você também atende aqui? – perguntou.
– Sim, mas não... não às quartas-feiras. Só vim hoje para preencher uns documentos... – A jovem respondeu e alguns segundos depois, levantou o olhar novamente: O que ainda estava fazendo ali? Oceania percebeu que era hora de voltar para a sala de espera, mas permaneceu sentada. Um silêncio incômodo pairou. Oceania respirou fundo e olhou para a jovem como se esperasse mais alguma coisa. A jovem começou a se sentir invadida.
– Há algo mais em que posso ajudá-la?
– Não! Quer dizer, sim. Isso... isso vai doer?
Ao invés de aborrecer-se com mais uma pergunta, a jovem logo entendeu e comoveu-se.
– Você é muito pequena... que idade tem?
– Hã... tenho 19.
A jovem assentiu.
– Hmmm. Não, a verdade... não tem que para nada se preocupar. É muito mais rápido e simples do que imagina. Fique tranquila e dará tudo certo.
À aquela altura, Oceania já pôde ver qual era a cor dos olhos da jovem doutora – eram verdes como os seus, mas verde claros.
– Que legal, e... eu posso... posso te pedir mais uma coisa?
Minutos depois, a recepcionista procurava por Oceania. Porque a porta da sala de Abril estava meio aberta, ela não pôde evitar olhar ao passar: uma garota morena estava sentada de costas frente à Abril, que lhe mostrava o objeto que seria usado para examiná-la e lhe explicava como funcionava. Porque Oceania estava de costas, a recepcionista pensou por um instante: cabelos compridos e lisos... era ela mesma, mas precisava confirmar.
– Com licença. Senhorita. A senhorita não era a que tinha hora marcada com o Dr. Muñoz? – perguntou. Oceania se virou para ela como se fosse uma aluna pega em flagrante pela diretora.
– Sim...
– Minha culpa – disse Abril. – Começamos a conversar e não nos demos conta.
– Mas por quê estão conversando? Você vai ser atendida pela Doutora ou pelo Doutor?
Oceania baixou o olhar e sussurrou consigo mesma.
– Infelizmente pelo Doutor.
A recepcionista não precisou dizer mais nada. Oceania se levantou e se virou para Abril, o olhar triste. Abril entendeu a situação e retribuiu. Estava, no entanto, feliz em ter ajudado.
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Sereia
Short Story🏆 2º lugar no Concurso Reis de Ladar na categoria CONTO 🏆 3º lugar no Concurso Mystic Queen na categoria CONTO Aos 19 anos, Oceania Morales é uma jovem solitária e que não se esforça em fazer amigos. Quando conhece Abril, sua vida parece mudar par...