E viveu feliz para sempre.
“Viverá feliz para sempre”, recordou as palavras d@ mag@ enquanto enxaguava o rosto na pia. Pela janela, espreitou o dia lá fora antes de pegar a toalha. A manhã estava coberta por uma espessa cortina de chuva, cinza e friorenta, mas curiosamente o clima fúnebre não o incomodava. Sentia-se bem, vigorosamente bem, com ímpeto de cantar e de dançar em meio à tempestade, como naquele filme de décadas atrás e que agora não fazia o menor sucesso, pois não era o que o público queria ver.
Escolheu uma gravata laranja e uma camisa social azul, como o céu de um meio-dia radiante, sem nuvens. Sorriu para si ao conferir-se no espelho. À medida que ajustava o nó da gravata ao pescoço, o sorriso persistiu consigo, quente, genuíno. Quando fora a última vez em que sorrira assim tão verdadeiramente? Não se lembrava. Talvez jamais houvesse experimentado uma ocasião assim, de euforia inebriante. @ mag@ dissera que ele viveria feliz para sempre, mas naquele momento achara toda a cena uma grande bobagem. Agora não tinha tanta certeza, mas, bem, o fato era que nem tinha certeza de ter comprado uma gravata laranja em algum ponto de sua vida, no passado. Supunha que já haviam parado de fabricar roupas nessas cores vibrantes, por falta de demanda. Decerto fora uma piada infame de um colega de trabalho, travestida de presente de amigo oculto de Natal. Não sabia ao certo, mas não importava. A gravata combinava com seu humor, e isso era o bastante.
Saiu de casa para mergulhar na multidão de guarda-chuvas pretos. As gentes andavam com pressa mecânica para seus respectivos trabalhos, porque afinal era uma segunda-feira como qualquer outra, não era? E pela primeira vez se deu conta de um detalhe: a torrente que distorcia o cenário, as pessoas envergando ternos ou tailleurs sóbrios, ou vestimentas de outro tipo, mas igualmente incolores, o pretume dos guarda-chuvas a semiencobrir faces apáticas, os prédios sombrios, tudo isso teria composto material perfeito para a tela de um impressionista alemão que se teria suicidado jovem demais. Nesse quadro desalentador, seria ele o único com vontade de prestar atenção à musicalidade do temporal, de assobiar e de sapatear sobre as poças? “Viverá feliz para sempre”, pensou. E sorriu ao caminhar até o metrô lotado, sem assobiar e sem sapatear: a mera intenção de fazê-lo combinava com seu humor, e isso era o bastante.
Depois de enfrentar a rotina de ser espremido, sufocado, possivelmente bolinado e submetido ao suor e aos odores alheios, bem como a três ou a quatro “desculpem-nos-senhores-passageiros-pela-frenagem-brusca”, tudo sem perder o ânimo por um segundo sequer, deparou-se com seu local de trabalho, o tão querido tribunal e, ao mesmo tempo, o edifício mais feio em que já tivera o desprazer de pôr os pés. Era estranho. Na semana anterior ele detestara cada minuto que passara ali dentro. Procurar, organizar e reorganizar autos processuais entre paredes revestidas deles, ouvir reclamações enquanto mantinha uma postura artificialmente cordial e lidar com pessoas perpetuamente sérias – sendo que a maioria era só postiçamente séria, ao passo que o um milésimo seriamente sério abandonara seus ideais e sua paixão havia muito, assim como todo o resto do mundo – era (“Maravilhoso”) angustiante.
Odiava aquilo tudo. Profundamente. “Então por que...?” Na última sexta-feira se desculpara por não poder comparecer à happy hour. O fato era que não enxergava sentido em afogar as mágoas em bebida e em conversas vazias, contudo não verbalizara nada disso. Todos certamente pensavam que esses momentos serviam puramente para disfarçar uns dos outros e de si mesmos o constante mal-estar que sentiam, porém existia uma espécie de acordo tácito que proibia qualquer um de tocar no assunto. O fantasma devia permanecer adormecido. Então por que agora, contrariando esses precedentes e a lógica, tudo o que ele mais desejava era estar lá dentro, trabalhando em algo de que não gostava e com gente que não tolerava, só para retornar a casa de noite e assistir ao jornal, só para obter meios de pagar as contas ao final do mês, só para, num solitário mês ao terminar o ano, tirar férias e viajar e postar as fotos da viagem no Facebook?