Capítulo Único ― Tudo por amor

17 1 2
                                    

"É preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. Os homens começam com medo, coitados. E terminam por fazer o que não presta. Quase sem querer. É medo." ― O Alto da Compadecida (Ariano Suassuna)


Ser a Morte não é um emprego que alguém quer ter, carregar a alma de um terreno nos primeiros momentos após desencarnar não é uma função que anjos e demônios queiram realizar; anjos por não aguentarem ver o desespero de certas almas e demônios por simplesmente acharem tedioso, por isso, caiu sob os ombros dos mestiços fazerem o trabalho sujo. Sim, existem anjos que acabaram por cair nos jogos carnais e prazerosos das demônias ou vice-versa.

Os híbridos nascem inférteis e são separados de seus pais desde bebês, passam toda sua existência levando as almas de qualquer criatura para seu julgamento. Não é um trabalho fácil ou que se tenha orgulho, é preciso ter muita frieza, entretanto, Lucy nunca demonstrou insatisfação pelo que fazia. A loira já estava acostumada, faziam mais de trezentos anos que ela fazia esse trabalho, tempo o bastante até para que ela parasse de odiar os pais: a mãe, uma anja inocente, que caiu nos encantos de um demônio acreditando que teria amor verdadeiro e o pai, um demônio, que só queria se divertir sem ter que admitir suas responsabilidades.

Ela abriu o portal até o lugar onde a morte ocorreria e mesmo estando na parte mais escura do beco conseguia ver bem o que ocorria à sua frente:

― P-por f-favor! ― Viu o homem murmurar com as últimas forças. ― M-me deixe vi-viver. ― Implorou à criatura a sua frente tossindo um pouco de sangue.

― Viver? ― Ele perguntou retoricamente com sarcasmo na voz e ela não pode deixar dar um sorriso de lado. ― Para quê? Para você matar mais daquelas pobres mulheres, seu verme? ― Disse em tom de repúdio. ― Você é a escória da raça humana. ― Falou antes lançar a esfera de fogo em direção ao homem que se tornou a única fonte de luz daquele beco escuro e sujo. A luminosidade do fogo daquele demônio foi o bastante para iluminar até mesmo a parte em que Lucy estava e ela caminhou a passos curtos e calmos até o corpo que era consumido pelo fogo sob a melodia dos gritos do homem que era queimado vivo tal qual uma bruxa na Inquisição. O seu assassino não parecia ligar muito para os gritos que ecoavam no local e se virou para ir embora calmamente.

― Mais um? ― Natsu ouviu a voz calma dela soar atrás de si e não pode conter o sorriso. Ele até havia esquecido que ela sempre aparecia naquelas horas. ― Você anda me dando muito trabalho, Natsu. ― Ela disse num tom divertido enquanto se aproximava da alma que se desprendia do corpo. A alma estava presa em agonia pela experiência traumatizante de ser queimado vivo e mais ainda por presenciar seu antigo corpo ser consumido pelas chamas até virar cinzas no chão de barro. Lucy abriu um portal até o Plano Superior e conduziu a alma do humano até o Julgamento Final.

O trabalho de acompanhamento dela acabava por ali e então ela pode voltar até o beco escuro e fétido em que havia visto Natsu. Avistou o rapaz com as costas escoradas na parede fitando a "fogueira" que ele mesmo havia criado instantes antes:

― Já levou aquele merda? ― Ele a perguntou assim que percebeu que ela havia voltado, em resposta, ela o olhou feio. Natsu nada fez, continuou encostado na parede. — Até que foi rápido dessa vez. — Ela suspirou antes de respondê-lo.

— Não o chame assim. Ele era só uma pobre alma. — Falou cansada. — Uma alma que pecou muito mais do que deveria e está tendo seu julgamento nesse momento, não precisa de mais um.

— Queria entender por que a Morte os defende tanto... — Comentou sem emoção.

— Não os defendo, só que com o tempo você adquire sabedoria e descobre os motivos dos homens agirem assim.

CurseOnde histórias criam vida. Descubra agora