Prólogo
Como do silêncio que do nada se desfaz, miúdo e uníssono, lenta e calmamente, o som a trouxe à tona. Mas não subitamente. E sim num gradiente. Consciência começou a reger. Inconsciente deixando suas últimas palavras. Algumas poucas sussurrando um sentido. Um sentido profundo e imutável. O sentido real da irrealidade. Os frágeis ciscos foram tocando a fina derme de seu rosto. Se trouxe a imagem bem difusa de cores numa nebulosa. Vagarosamente tomando seu tom. Vagarosamente tomando contornos.
Quando abriu os olhos e observou o recinto , Jordana percebeu não mais estar em sua cama. — Que lugar é esse? — ela se perguntou. Levantou-se calmamente de um sofisticado sofá azul-esverdeado. Estava numa sala. Uma sala de estar, aparentemente, de meados do século XIX. Observou o belo tapete vermelho vinho onde tinha acabado de colocar seus pés, assim como a lareira de pedra em frente a ele. Nunca tinha visto uma sala tão ampla e bela. Uma sensação de familiaridade. — O que está acontecendo? — ela perguntou em voz alta, embora a única resposta obtida fosse o deslocamento da coluna de ar a sua frente.
Andando pelo ambiente, deparou-se diante de uma bela estátua de mármore. Um busto de um homem. Nesse momento, lembrou-se de um filme de época e aproximou suas mãos da cabeça da estátua, tentando girá-la para a direita. Nada aconteceu. Porém, quando olhou para a base da estátua viu uma inscrição gravada. 'José Bonifácio de Andrada e Silva'. Uma vaga lembrança das aulas de história veio à mente, porém muito distante. No peito, uma insígnia em forma de uma cruz vermelha. Colocou sua mão sobre ela, com curiosidade. E eis que sentiu a parede e o chão sobre seus pés rotacionarem.
Surpresa, no novo recinto, caminhou com curiosidade. As paredes, cheias de quadros antigos. Pareciam pinturas da época do Brasil Colonial e Imperial. — Estou num museu ? — ela inquiriu dos quadros das paredes do salão — , se estou, não parece ter muita gente, tampouco um instrutor para me guiar — observou pensativa em sua mente. Mas um quadro lhe chamou a atenção. No centro da sala, em destaque, viu o quadro 'Independência ou Morte’ de Pedro Américo. Pedro Américo. Lembrou-se das aulas de história novamente. Entretanto, notou que tinha alguma coisa estranha na figura. No centro, a figura da mais ilustre personagem da pintura estava ausente: Pedro I. — O que havia acontecido ali? — se questionou, intrigada.
Olhou ao derredor para os outros quadros em busca de pistas. Mas, para seu espanto, constatou que todos eles se encontravam sem seus personagens ou peças mais importantes. — Que espécie de museu é esse afinal? — exclamou, assustada. Subindo as escadas, encontrou um corredor que abria para um grande salão e uma enorme porta no final. Um estranho sentimento de medo tomou conta de seu ser. — O que é tudo isso? — seja lá o que fosse encontrar, tinha que estar preparada. caminhou vagarosamente em direção ao salão, quando foi surpreendida por um berro.
Um gato. Pisou no rabo de um gato — Era só o que me faltava — reclamou — Bom, pelo menos algum ser vivo pra me fazer companhia nesse lugar vazio — pensou, esboçando um leve sorriso diante da pequena criatura indefesa. Agachou-se e chamou o gatinho assustado. Pelo visto, pareciam ter assustado um ao outro. Docilmente, ele veio e ela o colocou em seu ombro. Um sentimento de confiança preencheu seu peito. Seja lá o que fosse encontrar, tinha que confiar nos seus sentidos. Sentidos. Tinha que confiar no seu sexto sentido. Assim que se prepara para abrir a porta o que encontra é inesperado.
A sala em escuridão quase completa. Apenas um pouco da parca luz do salão entrava no recinto. Rapidamente o gatinho pulou de seu ombro como se tivesse visto algo se movimentar. Peças e objetos cairam, fazendo um grande estardalhaço. Até que perdeu o felino de vista. — Ok, preciso me acalmar — disse, respirando fundo. Voltou-se para trás e pegou uma das velas que iluminavam o salão. Um pouco melhor, mas nem tanto.
Andando silenciosamente, se deparou com um lampião velho. Colocou a vela dentro dele e seguiu adiante. Diversos móveis e objetos cobertos por longos tecidos brancos . Uma espécie de depósito de coisas antigas cobertos pela poeira. Puxou um dos mantos. Encontrou um crucifixo, folheado com linhas de ouro, porém sem seu mártir. Retirou outro tecido. Um quadro. Agacho-se para olhar mais de perto. 'Embarque da Família Real Portuguesa ao Brasil', autor desconhecido'.— Desconhecido. Parece que não é a única coisa por aqui.— observou, reflexiva. Entretanto, surpreendentemente, diferente dos outros, o quadro se encontrava intacto, com todos os elementos presentes. — Que estranho! — disse, susurrando. Passou a frente com a parca iluminação amarelada de seu instrumento útil. Adiante, uma estátua da justiça, em mármore negro, porém sem sua espada e balança. Como que instigada a alimentar a fome de seu espírito investigativo, agarrou firmemente a cobertura ao lado e a arrancou com força. Outro quadro. 'Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles. Mais uma vez, o quadro se apresentava em perfeito estado de completude. Incapaz de entender a ordem das coisas, soluçou, agoniada. Observou os recantos em seu entorno. Embora a luz fosse ínfima, percebeu enquanto percorria aquele aposento, que não havia encontrado os limites daquele lugar. Além disso, multiplicavam-se diante de seus olhos a quantidade de fantasmas formados pelos mantos brancos.— Por quê? — gritou, sentindo sua garganta fechada .No momento em que seus labios terminaram de gesticular essas palavras, enquanto tentava mover um passo adiante, sentiu seu pé traseiro escorregando num dos mantos. O lampião voando de suas mãos. seus dedos tentando se agarrar a qualquer coisa que a mantivesse em pé. Mas em vão. A vela se apagou. Havia perdido sua única bússola na vastidão do espaço. Sobre o chão, apenas os cacos do objeto quebrado. Porém, se recordando de seu pequeno amigo felino, sentiu que deveria confiar. Confiar em seu sexto sentido.
Um ruído. Como sussurros ininteligíveis, começaram a lhe chamar. Inexplicavelmente, se sentiu atraída. Como se fosse encontrar a si mesma. Seguindo os ruídos, foi direcionada para outra porta. Dessa vez, o recinto estava um pouco mais claro. Uma coluna transversal da luz do luar atravessava delicadamente a janela, enquanto um suave e gélido vento da noite, sacudia os transparentes véus da cortina. Seus olhos não puderam poupar admiração senão respeito. Diante de dela se encontrava extensa biblioteca. Do chão ao teto. Do claro ao escuro. Puxou um volume da imensa estante de madeira. 'História Geral do Brazil', de Francisco Adolfo de Varnhagen. Escrito para Vossa Majestade Imperial Dom Pedro II. Um arrepio percorreu seu corpo. Como se sentisse a importância do que estava em suas mãos. Um sentimento nostálgico toma conta de sua alma. Como se todo o conhecimento que a humanidade já tivesse conquistado estivesse diante de meus olhos. Como se as respostas de suas perguntas, ali se encontrassem. Aos poucos, começou a se sentir parte de uma grande história. Numa espécie de inconsciente coletivo...
Repentinamente irrompeu um barulho.— Ah, é o gato, o sumido — suspirou, aliviada. Tentou chamá-lo novamente. Mas dessa vez, ele a ignorou e saiu correndo. De longe, começou a miar para ela.— Que ótimo,—pensou —o gato é o novo coelho— pensou consigo mesma. Começou a segui-lo. Mas ele estava indo muito rápido.— Espera gatinho!— gritou, agitada. Correndo, tentou avista-lo na escuridão, até que não sentiu mais o chão sob seus pés...
Como num instante em câmera lenta, sentiu seu corpo mergulhando na água. O susto. Os pés perdendo o chão e a água subindo, à medida que o volume do seu corpo a deslocava. Caindo...até sentir um solavanco e o ar entrar em seus pulmões.
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Brasil e o Lago Do Império Refletido
Historical FictionA filha de um homem público proeminente começa a ter sonhos enigmáticos que a levam a fazer descobertas trancedentais sobre o passado do Brasil.