Os Olhos do Gato

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Certo dia, acordei às cinco da manhã para ir caminhar. Coloquei o tênis, os fones de ouvido e um boné para cobrir a cabeleira desgrenhada pela noite. Por questão de proximidade, segui o canal que cortava a cidade, que servia perfeitamente como circuito de corrida para mim e meus vizinhos de bairro. Alguns idosos já vagavam pelo local, uns sozinhos, outros acompanhados. Sempre que os vejo, me pego a imaginar se a velhice traz consigo um apreço muito maior pela solidão e pelas tranquilas horas da manhã.

Corri da São Sebastião até a Getúlio Vargas, e dei a volta para repetir o trajeto. O contador em meu celular marcou uma milha exata quando, bem no meio do meu caminho, avistei um sereno gato gordo parado. Conforme me aproximava, notei que aquele gato, ao contrário dos demais de sua espécie, que costumam fugir ao avistar um forasteiro, parecia não se incomodar com minha aproximação acelerada. Ele parecia me aguardar.

Até que, ao ficar frente a frente com o animal, pude notar que suas órbitas, que deveriam estar preenchidas com seus atentos olhos de gato, estavam vazias. Dilaceradas, na verdade, apesar de cicatrizadas. Foi esse choque, de imediato, que me parou. Fiquei encarando o bicho, que levantou as orelhas, como que para dar ciência da minha presença. Ainda assim, não se mexeu, e durante alguns segundos ficamos ali, silenciosamente, um de frente para o outro.

Ele era rajado, parecia já ter certa idade, e trajava uma coleira vermelha. O acessório me garantiu certo alívio, pois significava que devia pertencer a alguém, que era cuidado e tinha suas necessidades atendidas, apesar da escuridão. Senti que ele não ia me dar passagem, pois estava completamente indiferente à minha presença, visto que, em sua consciência felina, era eu quem deveria dar a volta para continuar meu trajeto.

Pois foi o que fiz. A silenciosos passos, marchei ao lado dele, e confirmei que sua figura estava incrivelmente relaxada. Talvez estivesse dormindo, absorto no próprio universo. Questionei-me se gatos podiam sonhar, e mais ainda, se um gato cego podia sonhar. Por que não? Apressei o passo e comecei a refazer o circuito, que deveria passar novamente pelo ponto em que estava o gato cego adormecido.

Enquanto caminhava, observei o caminho à minha frente, e reparei que ninguém vinha em minha direção. Tirei os fones de ouvido. Fechei os olhos e continuei andando. Diminuí o passo, pois tive medo de não mais andar em linha reta e me chocar com uma árvore, com o chão ou com uma pessoa. Não sei exatamente quantos segundos caminhei de olhos fechados, mas foi o suficiente para ouvir meus passos, minha respiração e meus batimentos.

Em seguida, ainda imerso, tomei consciência da névoa fria da madrugada sob minha pele, e também dos primeiros quentes raios de sol que a atravessavam. Ouvi um barulho de motor que vinha de muito longe. Não sei ao certo se pertencia a um carro, moto ou trator, mas era feroz. Ouvi passadas rápidas de humanos que me ultrapassavam enquanto corriam. Pássaros gritavam em árvores que me rodeavam. Continuei andando. Abri os olhos.

Contemplei o céu branco das cinco horas e vinte cinco minutos da manhã, que já não era tão branco, mas perolado, com tons de laranja vindos bem do fundo, onde o sol se anunciava. Comecei a correr. Queria alcançar novamente o gato. Desejava fixar meus próprios olhos novamente em suas órbitas vazias. Queria lhe acordar e acompanhar seu percurso até a sua casa. Sua, sim, pois sei que gatos são donos de qualquer ambiente que estejam, mesmo que não possam enxergar.

Alcancei o local, mas o gato não estava mais lá. Mirei o chão onde o havia visto pela primeira e última vez, e questionei a mim mesmo se não teria sonhado acordado com aquele animal. Não, não sonhei. Nosso confronto foi real. Mesmo que tenha sido unilateral, ele existiu. Éramos dois mamíferos de diferentes famílias, gêneros e espécies. Felis catus e homo sapiens. Dizem que sou dotado de consciência e racionalidade, e que o gato não é, por mais que ele pareça transbordar autoconfiança e sarcasmo. É tudo instinto.

No entanto, sem qualquer indício de sua materialidade, coloquei novamente os fones de ouvido. Tocava Mitski, que cantava "nobody, nobody, nobody, nobody, ooh, nobody, nobody, nobody". Aumentei a música. Voltei a correr. Disparei como se algo em minha existência queimasse em tristeza e urgência. Refiz o trajeto, esperançoso de que pudesse reencontrá-lo, mas o gato desapareceu. Corri em direção à minha casa, ultrapassando humanos, cachorros, motos, carros, e sem sinal de nenhum gato.

Adentrei meu lar. Tomei um banho demorado. Lavei os cabelos. Sentei no sofá da sala e contemplei Vênus, a gata preta que minha irmã havia adotado poucos meses atrás. Ela me encarava com seus ardilosos olhos verdes. Parecia que se preparava para me atacar a qualquer momento. Dei a ela uma atenção que jamais havia destinado a outro animal de estimação. Brinquei, fiz carinho, permiti que dormisse em minha cama. Fiquei envolvido com aquela criatura nominada durante alguns momentos enquanto lembrava do gato rajado.

A estranheza daquele encontro haveria de me deixar encabulado durante o resto do dia. Peguei-me constantemente pensando que, se eu mesmo fosse um gato, não teria que comparecer à terapia semanalmente para tentar descobrir quem sou e o que quero. Se um gato eu fosse, não seria necessário fingir, pois sendo apenas um gato, criatura irracional e sem consciência, não teria nenhuma expectativa com a vida. Apenas a viveria sem maiores questionamentos.

Se tivesse nascido felis catus ao invés de homo sapiens, não teria que lidar com a angústia de querer saber mais do que sei, pois não teria interesse em saber de nada. Iria querer apenas me lamber durante os dias, caçar pequenos roedores e receber muito afeto. Sim. Porque para os gatos, o afeto é importante, pois, apesar de não darem indícios dessa necessidade, necessitam ser amados e acariciados constantemente.

Para mim, essa é a parte mais interessante da natureza felina: eles amam receber, mas pouco se esforçam para retribuir. Até tentam, entregando animais mortos, pois acham que somos péssimos caçadores, mas não os compreendemos, então tendemos a achar que são perversos. Mas os gatos, apesar de impiedosos, não atuam, não mentem, não enganam e nem matam pela falta de amor, como os cães e os seres humanos.

Um gato, mesmo cego, é o único senhor de si mesmo, pois suas deformações não lhes tomam a elegância. Talvez por isso sejam tão mal compreendidos, rotulados de bichos frios, egoístas, malvados, ardilosos e desalmados. Mesmo quando são dependentes, não se entregam, não se rendem. Possuem muito mais força de espírito do que a maioria de nós, humanos vaidosos, que, por conhecermos filosofia, física quântica e matemática, achamos que domamos o princípio vital da vida, mas, ao contrário dos gatos, ainda não sabemos lidar com a nossa maior ameaça depois da fome e da doença: a solidão.

Rio Branco, 03 de setembro de 2020.

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⏰ Última atualização: Sep 03, 2020 ⏰

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