O Circo

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As pessoas da pacata cidade se animaram quando ouviram que O Circo estaria ali. Alguns até estranharam, mas isso não os impedia de ficarem ansiosos. O prefeito decorou toda a cidade para receber os artistas circenses, não queria deixar transparecer que esteve abandonada durante o seu mandato.

As pessoas de fato precisavam d'O Circo, de uma distração, queriam fugir da frustrante realidade, dos programas monótonos de TV e das notícias que só falavam sobre coisas ruins nos telejornais. No entanto, havia aqueles que não queriam O Circo ali, pois, sabiam que suas tendas eram erguidas sobre um mar de sangue e sofrimento. "Pobres animais." era o que muitos pensavam, mas ninguém fazia nada contra isso; eles ainda compravam os ingressos e assistiam aos espetáculos, horrorizados, mas assistiam.

Os olhos das crianças cintilaram quando os primeiros caminhões da carreata passaram pela avenida recém pavimentada da cidade, O Circo havia chegado. De dentro dos grandes containers de metal, os lamentos dos animais que seriam exibidos eram abafados pela euforia dos cidadãos perante os veículos iluminados, que não permitia que qualquer outro som que não fosse os gritos das crianças, os aplausos dos adultos e as músicas dos caminhões pudesse se propagar.

O Circo foi erguido no parque da cidade, as árvores foram derrubadas para dar lugar aos vários trailers e tendas, o cristalino rio que cortava a cidade foi utilizado para os artistas e animais se banharem e para a limpeza de seus equipamentos. Em poucos dias, o que antes era um parque natural onde as crianças brincavam e adultos passeavam nos finais de semana com seus cachorros, deu lugar à mega estrutura coberta por tendas coloridas e iluminadas.

Os ingressos foram esgotados quase que de imediato para o primeiro dia de apresentações, e quando o véu da noite desceu sobre a cidade, as filas para pegar os melhores lugares já davam voltas pelos quarteirões.

A tenda principal estava lotada, milhares de pessoas se aglomeravam quando todas as luzes se apagaram e um anel de fogo circundou toda a arena de apresentações. Um homem trajado em smoking – que ninguém vira chegar – estava parado no centro do círculo incandescente. Ele ajeitou a cartola na cabeça e alisou os longos bigodes enquanto as pessoas aguardavam ansiosas pelo seu pronunciamento.

— RESPEITÁVEL PÚBLICO!!! Sejam muito bem vindos a'O Circo! — Ele tirou sua cartola, de onde saiu um bando de pássaros que permaneceu voando em círculos ao seu redor. — Eu sou O Mago, dono de todas as maravilhas que trouxemos para encantá-los! E eu digo "maravilhas", porque para um povo tão maravilhoso de uma cidade tão bela, "números" se torna um nome fraco para vos introduzir às nossas apresentações.Maravilha! — concluiu após receber uma salva de palmas.

O Mago esticou a cartola para frente e os pássaros que voavam em sincronia foram entrando um a um no orifício do chapéu, ao final, o homem exibiu o interior da cartola que estava vazio, e recebeu mais uma salva de palmas com um sorriso no rosto.

Os números seguiram noite adentro, um casal de gêmeos elfos lutou bravamente contra dois anões, simulando a antiga rivalidade entre seus povos. Os elfos lutaram com arcos, flechas, lâminas forjadas por artistas e grandes escudos decorados com pedras preciosas, enquanto os anões lutaram trajados em suas armaduras de combate com seus grandes e pesados machados. Porém, para a força dos anões os elfos não foram páreos. Mesmo ferida e sozinha, a elfa lutou pela sua vida até cair ao lado de seu irmão com um profundo ferimento no abdômen. O Mago concedeu a vitória aos anões, e a arena mergulhou na escuridão no momento em que os dois iam violentar a elfa que dava seus últimos suspiros. Os aplausos cessaram quando seus gritos ecoaram pelo grande Circo, e as pessoas se abraçavam com medo, mas acreditavam que fazia parte da apresentação.

O anel de fogo novamente circundou toda a arena e lá estava O Mago em sua respeitosa posição de apresentador. O corpo do elfo, os anões e a elfa caída não estavam mais presentes, o sangue havia sido limpo, e de forma natural o Mago deu continuidade aos números. Ele fez um gesto com as mãos e uma pequena abertura surgiu entre as labaredas, por onde entrou dezenas de pégasos que trotavam em círculos ao redor d'O Mago à medida que este girava o seu corpo como se pudesse controlá-los.

O Mago foi abrindo os seus braços como um maestro em uma orquestra, a música começou a tocar cada vez mais alto e os holofotes iluminavam somente os animais que abriram suas asas plumadas de forma graciosa e deram início ao seu voo em círculos pela arena. O maestro então fechou os seus braços em torno de seu corpo e todos os animais foram ao chão, cobrindo seus corpos pálidos com as próprias asas. As luzes se apagaram e acenderam novamente em uma fração de segundos, e para delírio do público, os pégasos se transformaram em belos unicórnios com seus chifres brilhando como faróis.

Os aplausos eram tão altos quanto a música que ecoava pela grande tenda. O Mago então fez movimentos com os braços e as mãos como em uma dança e os esticou de uma só vez para as laterais. O anel de fogo cresceu e engolfou todos os unicórnios, inundando toda a arena flamejante até os pés d'O Mago, que levantou vagarosamente uma das mãos ao alto e as chamas o acompanharam em um tornado infernal no centro da arena. O homem não era mais visível naquele ponto com o fogo girando com intensidade ao seu redor. Mais uma vez ele abriu seus braços e o tornado de chamas se tornou uma tromba d'água, caindo de uma só vez ao chão, transformando o centro da arena em um grande lago. A música cessou, dando lugar aos incessantes aplausos.

As apresentações se seguiram durante os dias seguintes, e por todos os lugares o único assunto que se falava era O Circo, seus artistas e os animais exóticos e mágicos. As pessoas até mesmo esqueceram de seus problemas. O prefeito usou tudo aquilo para se autopromover em mais um futuro mandato, e no último dia das apresentações, fez um discurso antes dos números principais, declarando todo o amor que tinha – ou fingia ter – pelas artes circenses e os artistas em geral.

A população se entristeceu quando O Circo desmontou suas tendas e carregou seus caminhões para partir ao próximo destino. Foi como uma marcha fúnebre que os veículos deixaram a cidade logo pela manhã de domingo, sem música e aplausos. As cores haviam sido removidas e o cinza retornou para a vida das pessoas quando o último caminhão desapareceu no horizonte.

No fim, O Circo trouxe o que a população precisava, mas em troca do que eles tinham. Seu parque– antes verde e vivo – havia se tornado um grande lamaçal, e as crianças perderam seu lugar predileto de diversão. O rio antes cristalino e limpo agora estava poluído e fétido; os bolsos das pessoas estavam vazios pelos ingressos e lembranças compradas, e os cofres públicos haviam sido esvaziados em decorrência das reformas da cidade para receber o tão esperado convidado. Porém, as pessoas precisavam d'O Circo.

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