Frase#3

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O último soldado se ergue no campo de batalha, apoiando-se em sua lança com
a ponta quebrada. Ele retira o seu elmo amassado e o joga no chão fofo, recoberto por
neve. Com as costas de sua mão ele limpa sua testa, enxugando o sangue que teima
em escorrer sobre os seus olhos.
A dezenas de metros a cima de sua cabeça, um bando de corvos começa a
sobrevoar o campo de batalha, preparando-se para se banquetear nos restos mortais
dos dois exércitos que se enfrentaram. As pesadas nuvens cinzas se movimentam nos
céus, empurradas pela forte ventania que precede a tempestade.
Com passos penosos, o homem se arrasta até uma grande pedra e a escala. Do
topo da rocha ele observa a pradaria com os olhos marejados. Até onde sua visão
alcança tudo que ele vê são corpos mutilados e queimados de homens, mulheres e até
crianças. Algumas colunas de fumaça sobem até se perderem entre as nuvens.
Destroços de madeira das máquinas de guerras destruídas completam a paisagem
devastada.
Repentinamente um estrondo reverbera por toda a colina. O som é tão forte
que um leve tremor é sentido por todo o solo, sacudindo as árvores e folhas que, até
então, estavam cobertas pela neve. O bando de aves negras rapidamente bate em
retirada quando um corpo rasga os céus em alta velocidade e cai no meio do campo de
batalha. Ao chocar-se com o solo uma nuvem de neve e gelo se forma ao seu redor,
lançados ao ar pela força do impacto. Nada resistiria à uma queda daquelas. Nada
mortal.
Conforma a fina nuvem alva se dissipa, um vulto humanoide surge em seu
meio. Sua armadura de batalha se encontra rachada e danificada em toda sua
superfície. No peitoral de aço escarlate da proteção, um grande amassado revela o
exato local onde o golpe de seu oponente o acertara e o arremessara a dezenas de
metros.
O guerreiro se apoia em um de seus joelhos e com a mão pressiona o local do
ataque. Ele respira com dificuldades. Seu longo cabelo prateado cai sobre seu rosto
ensanguentado enquanto que seus olhos esquadriam todo o terreno, à procura de seu
oponente.
- Muito bem, Cavaleiro de Fenrir. Saiba que você é o primeiro a receber todo o meu
poder e ainda continuar em pé. – A voz feminina parece vir de todos os lugares e de
lugar nenhum. – Pois saiba que meu próximo ataque arrancará o seu coração.

Eu não espero resistir à sua próxima investida, Fafnir. Sei que logo morrerei. – O
Cavaleiro abaixa seus olhos, em direção à sua mão que pressiona o seu ferimento e
nota que muito sangue escorre por entre seus dedos. Ele se levanta e começa a retirar
as peças de metal que formam a sua armadura. – Eu só gostaria de partir sem deixar
nenhum assunto pendente para trás.
- Não tenho mais nada a conversar com você, Bastian. – Uma coluna de energia ânil
surge dos céus, e toca o solo. Aos poucos, a guerreira se materializa e o rompante de
energia se dissipa. – Já disse tudo que tinha para dizer.
Fafnir, se coloca em posição de combate, apontando sua espada em direção à
Bastian. Uma chama azulada é conjurada pela guerreira e passa a recobrir toda a
lâmina da arma. Do outro lado do campo de batalha, o Cavaleiro de Fenrir já terminara
de se despir de sua armadura e, agora com o peito nú, também se prepara para o seu
ataque final.
- Seja como você quiser, Fafnir. – Ao concentrar uma fração de seu poder na palma de
sua mão, o guerreiro convoca a sua lança primerva. A mesma se manifesta na sua
forma ancestral, recoberta por uma energia que se assemelha a relâmpagos
percorrendo todo o seu corpo.
Após se analisaram por alguns instantes, ambos os guerreiros partem em um
vôo rasante, um em direção ao outro. Conforme percorrem a distância que os
separam, um rastro é deixado na neve pelo ar deslocado pelos seus movimentos.
Aquele era o duelo entre os guerreiros mais poderosos da Terra.
O impacto entre os dois cavaleiros é tão forte que uma onda de choque se
propaga por alguns metros, jogando neve, gelo e membros mutilados em direção aos
céus.
Fafnir, a guerreira de cabelos dourados e trajando uma armadura negra
conseguira trespassar o seu adversário com a sua lâmina sagrada bem na altura do
coração, ao mesmo tempo que Bastian, o Cavaleiro de Fenrir a atacara mortalmente
com sua lança, ferindo-a em seu abdômen.
- Você realmente é impressionante, Fafnir. – Bastian lança um leve sorriso à sua
adversária antes de completar dois passos para trás, a fim de retirar a lâmina de seu
corpo. – Não me admira que tenhas me conquistado desde a primeira vez que a vi.
- Bastian, não faça isso. Por favor. – O sangue real de Fafnir começa a escorrer por sua
boca, atrapalhando a sua fala. – Você já me magoou demais.
O cavaleiro de cabelos prateados se surpreende ao perceber uma lágrima
escorrendo pelo rosto de sua amada.

Fafnir, eu... Você sabe que eu jamais faria alguma coisa para magoá-la. – Bastian se
aproxima e ampara sua noiva, que começa a perder a força nas pernas. Quando ambos
se dão conta, já estão um nos braços do outro. – Essas guerras e toda essa matança,
sempre foi o desejo de seu pai. Ele que nunca quis nos ver juntos.
- Eu... eu sei, Bastian. No fundo, sempre soube que você não seria capaz de levantar
um dedo contra a Coroa. E no fundo, eu nunca deixei de amá-lo. – A guerreira
finalmente cede aos seus sentimentos e encosta sua cabeça no peito do seu amado. –
Mas agora é tarde. Minha vida se esvai junto com meu sangue e, olhe, logo a chuva
cairá e ambos deixaremos esse mundo.
- Não, meu amor. Nunca será tarde para mim. – Bastian gentilmente ergue o rosto de
Fafnir e a beija – Lutei por séculos por essa oportunidade de sentir o calor de seu
corpo novamente. De sentir o seu coração batendo tão próximo ao meu. Mesmo que
nos reste apenas mais alguns minutos de vida, eles terão válido a pena cada gota de
sangue derramado.
Um relâmpago anuncia a chegada da chuva e, junto do ressoar do trovão, as
gotas gélidas de água começam a cair, lavando e purificando aquela pradaria e os
corpos dos dois amantes.
- Bastian, você faria tudo de novo, se te dessem a oportunidade de renascer
novamente aqui na Terra? – Fafnir envolve o corpo musculoso de Bastian com seus
dois braços e afunda seu rosto em seu peito.
- É claro, meu amor. – Com a cabeça erguida, o guerreiro curte seus últimos
momentos, enquanto a pureza da chuva enxagua seu rosto. – A vida não é uma peça
de teatro onde temos a chance de reparar nossas falhas, temos que vivê-la da maneira
mais intensa possível e da melhor forma que acharmos. E que melhor forma de passar
tantos anos na Terra que não ao seu lado?
Um tímido sorriso estampa os lábios do Cavaleiro de Fenrir e ele volta seu olhar
ao seu amor, aninhada em seus braços. Ao perceber que uma leve aura começava a
recobrir todo o corpo de Fafnir e perceber que o derradeiro momento da morte de sua
noiva se aproxima, uma lágrima de sangue brota no canto interno de seu olho.
- Vai com Deus, meu amor. Que o grande Senhor, em toda sua benevolência e
onipotência permita que nos encontremos novamente, em uma nova vida, sem
guerras e traição, para que, finalmente, possamos amar um ao outro.
O corpo de Fafnir, após ser inteiramente coberto por uma aura clara se desfaz
em milhares de pequenas esferas luminosas brancas e partem em direção ás estrelas
que formam a constelação de Altar, deixando o Cavaleiro de Fenrir sozinho e desolado
de joelhos na neve.

Por um breve momento, tudo que se pode ouvir no campo é o som da chuva
atacando o solo, o riacho e o metal das armaduras dos soldados mortos. Bastian
prende a respiração e espera que a morte o apanhe e o carregue diretamente de volta
para o inferno. Mas não é isso que acontece.
Ao perceber que seu corpo ainda guardava forças o suficiente para regenerar
todos os seus ferimentos, o cavaleiro urra de frustração. Seu grito de desespero
percorre quilômetros de distância e, todos que tiveram a infelicidade de escutar o
pranto daquele guerreiro, juram se tratar do urro de uma besta demoníaca.
O soldado errante, único sobrevivente daquela batalha que, até então
testemunhara tudo do alto da pedra recua alguns passos, assustado com o grito.
Devido aos seus ferimentos ele acaba tropeçando em seus próprios pés e cai da rocha
sobre uma carroça de mantimentos. A dezenas de metros de distância, a audição
sobrenatural de Bastian é atiçada e capta a origem daquele som.
Antes que o soldado pudesse se colocar de pé e correr, Bastian percorre
aquelas centenas de metros entre os dois em pouco mais de dois segundos e grava
suas garras na garganta do sobrevivente, erguendo-o do chão.
Pelas cores das vestimentas do soldado, Bastian nota que aquele homem é um
dos milhares que formavam a Armada da Coroa.
- Eu sinto muito, meu pobre senhor. Mas preciso das suas lembranças para concluir a
minha vingança. A Coroa me manipulou e me usou para seus próprios fins. E isso não
levou apenas à morte de milhares de inocentes como, principalmente, me tirou a única
coisa me importava nessa vida. – Bastian não consegue olhar nos olhos daquele
soldado enquanto divaga abertamente.
Sem entender nada e paralisado pela aura de medo que o Cavaleiro de Fenrir
emana, aquele último sobrevivente nada pode fazer, além de se debater e tentar se
desvencilhar da pegada daquele demônio.
- Você me perdoa? – Bastian finalmente consegue encarar a sua vítima e sem esperar
pela resposta, grava suas presas no pescoço do infeliz, sorvendo até a última gota de
sangue de seu corpo. – Agora estou pronto. Fafnir, me espere mais um pouco, logo
estaremos reunidos novamente. Mas antes, tenho contas a acertar.

Autor: B

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⏰ Última atualização: Sep 08, 2020 ⏰

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