Nesta estava voltando para casa

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Nesta Archeron estava voltando para casa. Sua cabeça girava a cada passo que dava, e sentia que seu estômago iria despejar toda a bebida consumida há algumas horas atrás, á qualquer momento, em uma vala qualquer.

Que situação.

Mas nada novo para Nesta, que nos últimos meses sentia em seus ossos um peso do qual não escolheu carregar. Nesta nunca escolheu nada disso, e a impotência diante a vida que lhe fora tomada, tornava sua vida ainda mais infernal. Ela não gostaria de estar em sua própria pele, agora, mais do que nunca.

E então ela bebia. E quando a bebida já parecia insuficiente, ela se deitava com o primeiro homem que se oferecesse, o que não era difícil de conseguir. Ela tinha em seu íntimo uma vontade ou uma esperança que as ondas de prazer levassem o desejo de desistir de tudo por pelo menos algumas horas. Mas nunca acontecia. Para começar, nem sempre Nesta desfrutava do momento, e geralmente se sentia suja e nojenta depois do ato. Ela se obrigava a ficar ali, encostar o corpo no do homem embaixo de si, obrigava seu corpo e deslizar e ofegar e, ás vezes, se obrigava a sentir o tal prazer que quase nunca vinha. A parte positiva era que o cheiro do homem feérico costumava disfarçar o seu próprio cheiro horrível.

Mas hoje, nenhum homem estava a acompanhando pelas ruas fétidas daquele lado da cidade, dentro do reino do encantador, poderoso e blahblahblah, Grão - Senhor, coincidentemente marido da sua irmãzinha perfeita. Alguns dias, Nesta queria esquecer quem sua irmã era. Queria esquecer ás vezes que não a deixou morrer, queria esquecer das vezes que ao menos se preocupou com Feyre.

Mas não, Nesta não queria pensar na família perfeita de grã senhores e círculos íntimos e toda a baboseira que vinha da cidade vizinha, da qual foi expulsa por Feyre e seu babaca-senhor e marido.Ela não queria pensar, queria desligar seus pensamos e rumar na noite escura e fria.

Havia também algo mais forte do qual lutar. Nesta precisava lutar contra ele, ou melhor, contra seus pensamentos sobre ele.

Nesta precisava lutar contra pensar em Cassian. Seu estômago enfim revirou com o simples pensar no feérico.

Mas essas batalhas ainda não eram piores do que a sua própria batalha. Contra ela mesma, o tempo todo, vinte e quatro horas por dia. Nesta era sua pior inimiga, a maior guerreira, a sua própria heroína e a primeira a desistir. Era ela por ela, mas Nesta sempre perdia.

Seu corpo sempre fora maior que suas irmãs, mais curvas e mais carne, mas lo tudo isso foi ficando para trás. Nesta estava magricela, seus ossos pareciam vidro prestes a partir, e ela sentia - e às vezes queria - sua imortalidade se esvaindo assim como sua vida mortal terminou naquele caldeirão.

Nesta estava voltando para casa. Ela usava um vestido velho e maltrapilho, largo em sua cintura, quadril e busto, longe de toda a vaidade que um dia teve. Seu rosto era pele e osso, mas ainda carregava uma pele limpa. Mesmo nos seus piores momentos, Nesta era a mais bela de todas naquele canto podre da cidade, ou em qualquer outro. Não que ela se importasse. Por fim, sua beleza só servia para lhe garantir um desconto na bebida barata e para ter uma noite de sexo decadente e sujo.

Nesta estava voltando para casa com algumas moedas no bolso, preparada para gastá-los em uma mercearia perto de seu apartamento tão decadente quando ela. Ela tinha alguma sopa mal feita e rasa em sua casa, pois mesmo com um cofre repleto de moedas para gastar, Nesta se subnutria, pulava refeições e gastava com bebidas. Ela não se importava. Não mesmo.

Naquela noite, quase manhã, após vomitar o álcool e quase o seu estômago junto, a dor que sentia era tanta, que resolveu seguir o desejo de comprar um pão recém assado, uma das poucas guloseimas que já se permitiu na vida toda, e uma das poucas coisas gostosas que eram vendidas naquela espelunca.

Quem visitava a cidade do grão senhor favorito de todos os tempos, não imaginava que haveria pobreza e podridão em algum lugar. Mas é bem onde o sol não bate que o majestoso féerico resolveu abandoná-la, talvez porque aquele canto da cidade contasse um pouco sobre Nesta. Ela conseguia se ver em todos os bares capengas e vielas podres.

O abandono doía, mas ela nem sentia mais. Tinha coisas piores, não? Sim, a droga da sua mente a fazendo se afogar todos os dias era pior que tudo isso.

Naquela situação, a dor no seu estômago pelo menos a fez esquecer sua dor pessoal e seu inferno mental.

Nesta percebeu, e se lembrou, que sim, havia uma dor pior que todas: A Fome.

Então, ela apertou o manto cinza ao se redor e com a tontura já passada, ela foi a passos acelerados em direção á mercearia.

— Cuidado aí moça! — Alguém disse, abaixo dela. — Eu sou mendigo, não pedra para ser chutada.

Nesta não soube o que falar, apenas encarou o moço de pele suja, barba por fazer e dentes tortos. Ele fedia tanto quanto uma vala aberta, tinha unhas sujas e seus pés estavam descalços. Ele se encolhia contra a parede, enrolado em um pano furado e tão sujo quanto.

— Á propósito, moça. — Ele continuou — Você pode me dar alguma coisa para comer?

Nesta podia, mas não sabia se deveria.

Ela desviou o olhar da figura magricela e suja, correu e entrou na mercearia. Jogou três moedas no balcão e apontou para os pães. Nesta não dizia nada e nem precisava. Ela tentava andar pelas sombras do bairro o tempo todo, mas sabia que sua fama corria solta por ai.

Maluca

Bêbeda

Puta

Ingrata

Grosseira

Irmã da grã senhora

Ela estava acostumada com isso e não se importava.

O primeiro pão foi. Seu estômago já não doía mais, ela se sentia seus sentidos voltando a vida. Enquanto devorava o seu segundo pão quente, sentada em uma banqueta, Nesta viu o seu reflexo no espelho da parede.

Magricela, descabelada, bela, cruel, bêbada e qualquer outra coisa mais.

Então ela lembrou do morador de rua. Sim, nem toda a benevolência do imaculado da cidade ao lado conseguiu banir a pobreza do lugar. Ela revirou os olhos e terminou o seu pão.

Mais clientes começavam a entrar, mas nenhum deles parecia se quer ver o morador de rua. Todos saiam com seus sacos cheios de pães e quitutes, enquanto não jogavam sequer uma moeda de menor valor para o rapaz.

Então, Nesta se levantou e com uma última moeda, conseguiu mais um pão. Dessa vez, não era para ela.

Sem olhar muito para o rapaz, Nesta lhe entregou o pão e saiu correndo, sem olhar para o semblante de surpresa e agradecimento do rapaz.

Os moradores do bairro viram o que ela tinha feito, mas ninguém ia falar sobre isso no dia seguinte. "Ela estava tão bêbada que deu a própria comida para o mulambento! " eles diriam, ou até mesmo que ela o levou para a cama. Infinitas histórias sairiam desse momento, mas nenhuma delas contariam a verdade.

Nesta estava voltando para casa e já era quase de manhã quando se jogou na cama, pronta para dormir, ou tentar.

Ela não tinha mais fome, embora sua cabeça girasse. Nem o rapaz na rua, embora ela soubesse que ao contrário dela, ele não teria uma cama ou um teto, mesmo que fosse tão podre quanto o dela.


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Twitter: @livrosporumtriz

Nesta estava voltando para casaOnde histórias criam vida. Descubra agora