Eu sou cordão umbilical

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Música sugerida: 

Todo Homem - Caetano, Tom, Zeca e Moreno Veloso.

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Rio de Janeiro, 2024.

A dor é como as marés.

Ela vem e vai.

E você, de olhos fechados e nua da cintura para baixo, já não avança contra ela. Mas trabalha a seu favor, como se ambas fossem uma coisa só. Como se não houvesse nada fora da penumbra desse quarto asséptico em que vocês estão, olhando diretamente para os olhos uma da outra, numa dança poderosa, ritmada e muito feminina.

Dois pra lá, dois pra cá

Dois pra lá, dois pra cá.

A sensação é de que seu corpo, que já fez isso antes, nesse mesmo lugar, quer te lembrar que, nesse caso, a dor precisa ser embalada.

Sentida.

Tratada com respeito e reverência — como uma mulher a mais no cômodo do hospital em que se encontram.

Afinal de contas, ela é um sinal, presente e incômodo em iguais proporções, de que sua filha está chegando ao mundo. E de que, horas mais tarde, seus braços serão preenchidos pelo corpo frágil de um bebê — e não mais seu útero. Você deixará de ser duas mulheres, para ser uma só, após quarenta semanas fazendo de seu organismo a casa de outro ser humano. Como se sua matéria fosse uma daquelas árvores mágicas descritas incansavelmente em centenas de romances dos mais variados autores planeta afora, capaz de criar os próprios frutos e com sua própria seiva alimenta-los e torná-los mais fortes.

(Mesmo que esses frutos apareçam de surpresa, como a criança ansiosa por sair da piscina amniótica formada por sua placenta há nove meses. Porque, você aprendeu e aceitou ainda que com alguma resistência, a vida não tem hora para acontecer. Ela simplesmente é, e não se importa nem um bocadinho com a opinião de meros mortais que acreditam poder controlá-la de alguma forma).

Você geme.

Rodrigo, sentado atrás de seu corpo, servindo como apoio, acaricia levemente sua barriga baixa e protuberante, sem dizer uma única palavra. Não só porque seu marido sabe a hora certa de falar e de calar, mas, porque entende perfeitamente que esse momento é seu e de mais ninguém. Por isso, são somente as mãos dele que te dizem algo. Íntimas de sua pele, elas também passeiam por seus braços chamando pela filha de vocês dois; os toques de seus dedos são tão suaves quanto o som de sua respiração, o que te faz relaxar instantaneamente. A certeza de que logo tudo acaba enchendo seus pulmões e renovando suas energias, ao mesmo tempo em que arranca um longo suspiro de seus lábios rachados.

E talvez a pequena sinta o mesmo, porque algo se abre dentro de você e empurra sua filha ainda mais para baixo. A cabecinha coberta de cabelos escuros já coroando — mais um sinal de que falta pouco para que ela faça sua chegada à Terra e vocês possam, enfim, conhecê-la.

A dor te tira para dançar outra vez.

Ao longe, algumas vozes, em sua maioria de mulheres, te incentivam a dançar de volta com ela — a do seu marido, mais nítida que a dos demais, se perde nos fios bagunçados de seus cabelos cheirando a shampoo e suor.

Falta pouco, amor. Ele diz com aquele tom que usa para se dirigir unicamente a você.

Dessa vez, porém, suas palavras estão carregadas de uma emoção diferente. É quase como se Rodrigo estivesse observando a dor te rodopiar por um salão imaginário, torcendo para que sua desenvoltura com a dança te faça uma bailarina tão talentosa quanto ela — nem superior, nem melhor, mas á sua altura —, para que assim Olívia possa chegar mais rápido.

Então, você se move junto com a dor.

Como duas velhas conhecidas, conversam entre si enquanto giram sem parar. Num entrevero constante de respirações aceleradas, pontadas dolorosas e gritos que rasgam a garganta, ambas se entendem. Se reconectam e se fazem íntimas outra vez.

Ela te lembra que lhe serviu de companhia, das mais variadas formas, em muitos momentos de sua vida. Já acompanhou amizades desfeitas, corações partidos e trabalhos negados, e também esteve presente nas quedas da primeira infância, em jogos acalorados de handebol e na gula de comer uma garfada de risoto de camarão — sua marca registrada na cozinha — ainda quente.

Onde o ser humano está, a dor o espreita.

Assim que é hoje.

(E também foi assim, há exatos dois anos, durante o nascimento de Alice, sua filha mais velha, que corre animadamente pelo corredor do hospital com os primos).

É a segunda vez que seu corpo se depara com esse tipo de dor, e ele tenta se familiarizar com ela de novo. Mesmo que seja agridoce assimilar que sua presença extenuante não só contribui para a vinda de Olívia ao mundo, mas te faz ainda mais consciente da força que mora dentro de você — se é que se pode alegar algum tipo de processo consciencioso em uma mulher prestes a parir um bebê de quase três quilos, de forma totalmente natural e espontânea.

E é esse entendimento que te faz querer gritar.

E você grita.

Obedecendo um desejo quase animalesco de seu corpo de se libertar de tudo aquilo e pegar sua filha no colo pela primeira vez, você grita mais uma vez.

Faz força.

E dança com a dor, mesmo que ela já não esteja mais à sua altura e tenha se transformado numa parceira aquém de seus talentos para conduzi-la.

Ainda assim, você a rodopia.

Dois pra lá, dois pra cá

Dois pra lá, dois pra cá.

— Ela vindo, amor... — Rodrigo, com a voz embargada, avisa.

— Eu sei... eu sei... — Sua voz sai entrecortada, enquanto seus olhos se enchem de lágrimas em expectativa pelo que virá.

Então, a dor olha dentro de seus olhos por uma última vez. Ela já não é mais sua amiga, mas uma lembrança vaga, embaçada e desgastada pelo tempo. Vocês já não são uma só, porque ela não existe mais.

Um choro fraquinho atravessa o quarto, fazendo seu coração explodir de amor.

Todos os presentes na sala de parto comemoram.

Você sorri. Os olhos verdes derrubando lágrimas de felicidade e de alívio.

E logo sua filha está em seu colo quente, recebendo o beijo guardado por todos esses meses.

— Oi, filha... — Você murmura, cheirando-a em seguida.

Ao som de sua voz, a pequena se cala e passa somente a observar. Os olhos escuros como os do pai e da irmã, tão gigantes quanto os seus, alternam entre seu rosto e o de Rodrigo, que ainda chora baixinho, completamente encantado por mais uma menina em sua vida.

— É o papai, Olívia... — Você sussurra com amor, sorrindo sem parar, mesmo que o processo de expulsão da placenta esteja começando a incomodar. E é como se ela entendesse tudo, pois sua mãozinha se fecha em um dos dedos do pai. — Ele é lindão, né? A mamãe também acha...

Rodrigo ri levemente, apertando vocês duas entre seus braços fortes, para logo em seguida beijar sua orelha e ali, naquele cantinho de seu corpo potente e gerador de vidas, dizer o quanto te ama.

A dor é como as marés

Ela vem e vai.

Dança com o mar

Dança com a lua.

Dois pra lá, dois pra cá.

E a chegada de Olívia Moreira Simas, embalada pelo movimento invisível das marés e com rastro de lua cheia em seu espírito de menina, é uma prova viva disso.

Como em um passe de mágica, a vida se torna ainda mais linda.

Completa.

E muito mais feliz.

OlíviaOnde histórias criam vida. Descubra agora