Prólogo

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A escuridão da noite sufocava o peito daquele homem enquanto ele corria desesperado entre as habitações do cortiço. Havia urgência em seus olhos enquanto as gotas da chuva gelada lhe açoitavam as costas. Algumas trovoadas de vez em quando iluminavam seu caminho, revelando a lama que sujava seus pés e suas calças, mas nada disso importava mais. Tinha de chegar até ela o mais rápido possível, era uma questão de vida ou morte. Mas porque diabos aquele cortiço era tão grande? E porque diabos a velha tinha de morar tão longe?
Seu fôlego já começava a lhe abandonar quando virou uma esquina e se deparou com um casebre de madeira que parecia abandonado. Um trovão iluminou o céu revelando as paredes velhas e os buracos no telhado do casebre.

- DONA MADALENAAAAAA!!!

O grito desesperado do homem cortou a noite acordando vários dos moradores do cortiço que logo acenderam suas velas dentro de suas casas afim de verificar oque se passava.
Antes que Antônio pudesse chegar ao casebre, porém, escorregou e estatelou-se no chão de cara na lama.
Ao tentar se levantar, uma dor lancinante atingiu sua perna direita. Devia ter quebrado algo na queda. Um par de pés sugiram diante de seus olhos e ao olhar para cima, viu quem viera procurar.
Vestida com uma velha capa marrom e um xale vermelho, Dona Madalena se apoiava em uma bengala, e o fitava com tranquilidade no olhar. Sua pele negra enrugada pela idade e seus cabelos brancos como as nuvens num dia de inverno. Ela era a parteira do cortiço e haviam rumores de que fosse também uma bruxa.

- Você precisa nos ajudar... É a Helena... Ela entrou em trabalho de parto e está perdendo muito sangue...

O homem caiu em prantos, suas lágrimas de desespero se combinavam com a chuva que caía e regavam o chão enlameado. Uma frustração sem tamanho o atingia no fundo de sua alma. A sua volta, já se podiam ver algumas janelas que se entreabriam para ver oque estava acontecendo.

- Levanta que num vai mais doer.

A voz de Dona Madalena soou dentro de sua cabeça e revigorou todo seu corpo. Sentiu-se novo e com ânimo renovado. Sua perna já não mais doía. Talvez os rumores fossem reais.
Se levantou e seus olhos castanhos fitaram o fundo dos olhinhos cor de mel da velha.

- A Helena... a senhora precisa nos ajudar. Eu acabei deixando ela com a Jandira, mas ela também precisa cuidar do próprio filho, não pode...

- Ah o menino da Jandira - a velha disse com uma voz levemente sonhadora - teu menino vai ter um laço com aquele lá.

Antônio emudeceu. Não soube oque dizer. Ele estava desesperado e ela dizendo aquelas coisas sem sentido? Oque ela estava pensando? Ele não estava de brincadeira, poderia de uma tacada só, perder a esposa e o filho.
A mulher o olhou seria. Parecia poder ouvir cada palavra de seu pensamento. No entanto, não havia desespero em seu olhar. Não, era diferente. Era quase um olhar de pena.

- Vai pra casa meu fio, que eu já tô chegando.

E após dizer isso, um trovão explodiu no céu fazendo a mulher sumir num piscar de olhos.
Antônio congelou alí. Teve uma leve sensação de que aquilo tudo havia sido um delírio, mas não podia ser. Fora real demais.
Olhou em volta e constatou que alguns rostos o observavam das janelas, iluminados apenas por velas. Pelo pavor em seus olhos, e pela maneira como alguns faziam o sinal da cruz para se benzer, Antônio constatou que aquilo devia ter sido real. Dona Madalena realmente desapareceu na sua frente. Mas onde havia ido? Será que foi pra sua casa como disse que faria?
Ele não perdeu tempo, não havia mais nada para fazer ali de qualquer forma. Teria de confiar nesta possibilidade, apesar de não parecer tão possível assim.
Deu meia volta e correu de volta para casa. Em sua cabeça, um turbilhão de pensamentos. Será que Helena sobreviveria? E seu filho? Como poderia viver sem qualquer um dos dois? Afinal, onde aquela velha bruxa havia ido?
Depois de muito tempo correndo pelo cortiço no meio da chuva e da escuridão da noite, seu fôlego já o abandonava novamente. A chuva, apesar de agora estar mais fraca, ainda se mantinha gelada e sufocante. Em seu peito, seu coração bateu mais forte quando chegou na escada que levava a sua casa e ouviu o choro de um bebê. Subiu aos tropeços e quase arrancou a porta das dobradiças ao entrar.
O lugar era pequeno. Um quarto com um velho armário e uma cama de casal, na qual uma pálida Helena o olhava alegre enquanto segurava algo enrolado num pano. Sentada ao lado da cama, estava Jandira, sua vizinha de porta. Era uma mulher bonita, mulata de cabelos cacheados e olhos verdes. No outro canto do quarto, Dona Madalena preparava algum tipo de mistura no que parecia ser uma cuia. Como ela chegara ali tão rápido, Antônio não tinha ideia, mas não importava. Seu filho havia nascido.
Seus olhos correram pelo quarto e se detiveram na cama, e então ele sentiu seu estômago afundar. Havia sangue... muito sangue. Só então notou o ar de preocupação no rosto de Jandira. A mulher levantou-se da cama, e ao cruzar com ele na porta, tocou seu ombro. Seus olhares se encontraram e uma lágrima percorreu pelo rosto dela. Ela abaixou a cabeça e saiu.
Antônio correu pra onde alguns segundos atrás estava Jandira e acariciou os cabelos negros de Helena.  Ela pegou sua mão e levou até o menino que segurava no colo. Seu dedo tocou a mãozinha da criança e ele caiu em choro. A alegria e a profunda tristeza brigavam dentro de seu ser, cada qual querendo tomar conta.

- Ele vai se chamar Henrique, como meu pai... e Antônio como o próprio pai.

Helena declarou com lágrimas de felicidade no olhar. Ele apenas não conseguiu dizer nada. Era sufocante demais ver Helena naquela situação. Queria dizer algo, mas invés de palavras, saíam-lhe apenas lágrimas.
Olhou para Dona Madalena que chegava com uma cuia contendo um líquido amarelo, o qual fez Helena beber.

- Eu preciso falar com vosmecê meu fio. - a velha disse séria para Antônio, que acentiu e os dois foram até a porta.

- Eu num vô mentir. Num tô aqui pra te iludir. Ela num vai sobrevivê.

- Mas...

- Infelizmente num tem "mais" meu fio... Só tem menos. Eu dei pra ela uma mistura pra que ela parta sem sentir nenhuma dor, mas não tem mais nada que eu possa fazê. Eu lamento muito.

Antônio olhou para a mulher na cama. De alguma forma ele sabia que ela não sobreviveria, mas ouvir isso da boca de alguém parecia tornar tudo pior. Oque seria dele? Como faria para criar o filho sozinho?

- Cuida bem do menino - disse Dona Madalena, parecendo ler os pensamentos de Antônio. - cuida bem que no momento certo, ele vai descobrir a força dele, mas até que chegue lá, vai precisar de todo apoio que for possível.

Antônio acentiu atônito. Andou novamente até Helena e beijou sua testa. Ela parecia sonolenta agora, e lhe entregou a criança para que não a deixasse cair. Antônio olhou o filho com um carinho que nunca sentira por ninguém antes. Era diferente do amor que sentia por Helena. O bebê parecia dormir sereno. E quando Antônio olhou para Helena, viu nela o mesmo semblante. Ela dormia, e ele sabia que não mais acordaria.

O Coração da MagiaOnde histórias criam vida. Descubra agora