Verde-água

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Choveu em Copacabana. Entre os apartamentos, gotas pesadas pendem das folhas e estrelam as poças d'água enquanto a rua retoma seu ritmo.

No segundo andar de um dos prédios, um disco de vinil gira a trinta rotações por minuto, e a luz da sala de estar está apagada. O sol, aos poucos, trinca as nuvens densas para se mostrar antes das seis, e esse crepúsculo tímido ilumina o sofá terracota e o tapete setentista de Maria Júlia.

Com seus quarenta e nove anos, seu um metro e sessenta e cinco de altura e uma leve escoliose que a acompanha desde a adolescência, a professora de literatura vive sozinha. Não teve filhos, não se casou, apenas amou várias vezes a mesma pessoa até que, por fim, se cansou. Maria, como gosta e está habituada a ser chamada, gastou parte expressiva de seu dinheiro ao longo da vida para "construir seu lado artístico", como a mesma justificava ao ser questionada sob opiniões inconvenientes de parentes. Por isso, sua sala de estar é recheada de livros, vinis e desenhos colados na parede.

Da sua vitrola, Maria ouve João Gilberto. Sempre foi ávida entusiasta da música popular brasileira, mas também ama o rock de mesmo modo. Talvez por essa mistura, desde sua adolescência, vive a querer emoldurar sua vida em um tropicalismo eterno. Tentou aprender violão várias e várias vezes, nenhuma funcionou. Tentava até cantar, mas sua voz era tradicional demais para seu espírito que buscava uma revolução em tudo. Acabou se bastando no que nasceu sabendo fazer: Maria Júlia desenha e, em suas crises existenciais, tira uma poesia ou outra.

Sentada, com as pernas cruzadas e cabeça apoiada no encosto macio do sofá, buscava fundir sua existência ao incenso de lavanda que borboleteava na sala, enquanto João cantava baixinho. Quando sente a falta do som da chuva, Maria Júlia, de ríspido, olha seu relógio de pulso e vê que já são quase quatro e meia — horário esse que, no seu cronograma a sós, é o de ir à padaria.

Calça suas alpargatas verde-musgo e apanha sua ecobag estampada com a logomarca de alguma livraria. Cuidadosamente, tira João da vitrola bem no meio de "Desafinado" — uma pena, Maria Júlia gosta muito dessa música, talvez porque seja desafinada, talvez porque se lembra das vezes que amou. Sai do apartamento e, calmamente, vai pincelando os degraus com seus passos leves até atingir o térreo e, de lá, atravessa até a porta que dá para a rua, sem dispensar o cumprimento ao porteiro e aos demais condôminos que por ali passam.

Conforme sai, Maria inspira o ar fresco e o cheiro petricor ainda vivo no asfalto e nas árvores de Copacabana. A padaria é logo na esquina, do outro lado da rua, e como sempre passava ali ao longo dos anos, não dispensa comentários sobre o tempo com as senhoras às janelas dos primeiros andares. Assim, Maria Júlia anda devagar no conforto de sua rotina bossa-nova pouco revolucionária.

Chega à padaria. O cheiro de café recém-saído e a atmosfera quente embalam em cheio seu olfato habituado ao ar das calçadas. É o aroma oficial das quatro e meia. Maria Júlia vai até a grande mesa no centro onde, por baixo de panos finos para privar as moscas, doces e pães se estiram.

Enquanto passeia sobre o açúcar de confeiteiro, seu olhar esbarra, inesperado, em uma mulher alta de cabelos longos e brancos-um-pouco-ainda-loiros, que fita, também, com seus grandes olhos verdes, o açúcar que torna a mesa tão branca e onírica.

Maria Júlia congela, e seus pés calçados em alpargatas verde-musgo parecem não mais tocar o chão. A outra mulher em questão, sentindo o peso do olhar, talvez, também encara os grandes olhos castanho-escuros que a fitavam do outro lado da mesa. Seus lábios ligeiramente vermelhos se abrem numa expressão quase imperceptível de surpresa. Com seu um metro e setenta e dois de altura, cinquenta e quatro anos e cabelos longos com as mechas dianteiras reunidas em uma pequena trança — o mesmo penteado desde seus tempos de jovem — , está Helena. Indiscutivelmente, Helena.

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