1. Um barco perdido

8 4 1
                                    

          Por semanas, tudo que Ephany conseguia ver nos poucos momentos em que conseguia sair do pequeno espaço improvisado onde ela é seu pai dormiam era a escuridão e a névoa. Para todos os lados. Um infinito de nada, sem sim.   Acima e abaixo.
          Seu pai a confortava quando ela o olhava assustado ao ouvir o gemido repentino das tábuas, dizendo que estava tudo bem, dizendo que era perfeitamente esperado e natural o barco reclamar da água de vez em quando, porque a madeira sentia saudades da terra de onde foi tirada. Ephany confiava em seu pai, e respondia com um breve aceno de sua cabeça. Ela só não podia mais fingir que não percebia que, cada vez que ele repetia o mesmo bocado de palavras, a frase lhe saía da boca cada vez mais cansada, cada vez mais lenta, como se ele precisasse, ao mesmo tempo, reafirmar seu significado, e também se lembrar do que elas queriam dizer. As olheiras dele ficavam tão mais escuras e profundas toda vez que Ephany acordava. Da última vez em que dormiu, ela sonhou que seu pai havia perdido os olhos, restando-lhe apenas dois buracos sem fundo no lugar.
          No vigésimo terceiro dia começou a chover uma chuva forte e assustadora que os acompanhou por incontáveis horas. Talvez dias. Não dava para saber, pedido na escuridão eterna. O pai envolveu o corpo pequeno de Ephany com todos os lençóis que tinham e a colocou no pequeno espaço coberto onde estavam as provisões, e depois ficou jogando a água que caia no barco para fora com um balde. Suas mãos ficaram em carne viva e seu rosto estava castigado pelo vento e pela exaustão. Ele escondia comida quando Ephany estava dormindo e dizia que havia comido quando ela acordava, e depois devolvia quase tudo de volta aos poucos.
          Foi no sexto dia depois da comida acabar que ele desmaiou e não acordou mesmo depois de Ephany balançar o corpo dele com toda sua força. Ela então se colocou no meio de seus braços e fechou os olhos com força. A fome lhe rasgava de dentro para fora e o cansaço a espancava de fora para dentro. E então ela escorregou para um sono profundo, ouvindo a mesma frase que o pai sempre dizia quando mais um gemido cortou o silêncio.
          "Não seja boba, minha flor, é só a madeira com saudade da terra onde cresceu quando era árvore. E tudo vai ficar bem"
          E tudo estava bem. Até Ephany acordar.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Oct 15, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Penumbra ErranteOnde histórias criam vida. Descubra agora