Parábola do Trigo e do Joio

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Pessoas são um amontoado de fantasmas e traumas antigos, talvez por isso elas se tornem tão problemáticas, o que acaba por fazer com que produzam desastres ao seu redor. Alguns desastres singelos como uma ferida que cicatriza tão rápido quanto o piscar dos olhos, outros desastres tão feroz e avassalador quanto um câncer que se apropria das suas células, que te mata pouco a pouco, que rouba seu ar, que te transforma. E era isso que ela conhecia desde pequena, era neste desastre que ela pensou durante toda sua vida: na renegação, no abandono, nas palavras, nos diversos traumatismos emocionais que carregou cada dia como uma maldita herança em seu DNA, sugando sua mente de pouco a pouco.

Louise não sabia ao certo quando ela se transformou exatamente no que ela é hoje, sua personalidade não foi moldada como água e vinho, mistura a qual dá para ver claramente os dois componentes unidos. Para ela foi como a parábola do trigo e do joio, a maldade foi crescendo no meio da sua bondade, difícil de pontuar quando a semente ruim se instalou completamente. Mas, embora Louise não tivesse conhecimento exato do período em que se transformou em algo que não esperava ser, ela conseguia se lembrar detalhadamente dos caminhos que a fez chegar ao ponto atual, a toda raiva e ódio acumulado como um veneno que destrói tudo que cerca seu caminho.

Em 2002, quando Louise tinha três anos de idade, seu progenitor - pai de sangue - foi embora de sua casa, deixando apenas um ursinho velho com um bilhete escrito: "eu sempre irei te amar, Lou". Naquele período, por sempre ver na televisão atores e atrizes dizendo que amava um aos outros, ela acreditava que as palavras escritas naquele papel de tonalidade amarronzada serviam, claro, não aquele amontoado de letras, mas o significado forte que o termo apresentava ao mundo, o peso que o amor se fazia dentro dela. No primeiro dia, após a partida de seu pai, ela dormiu em sua cama com a esperança que este amor o traria novamente, que amanhã ela ouviria a risada dele na escadaria enquanto sua mãe brigava por farelo de alimentos crocantes em cima da mesa ou que ele iria acorda-la novamente com um grande abraço, mas o sol apareceu, ela acordou, sua mãe saiu para trabalhar e ele não havia retornado.

No jantar, ela e a sua mãe, a qual Lou também chama de progenitora atualmente, comeram uma lasanha congelada que demorou no máximo 20 minutos dentro do micro-ondas. Naquela noite o barulho da televisão não existiu, porque seu pai, a única pessoa que se recusava a fazer a refeição noturna na cozinha por causa do jornal diario, também não existia mais dentro daquela casa, o silêncio havia se tornado parte da residência, junto a clara tristeza e raiva que os olhos da sua mãe transmitiram quando Lou disse que estava com saudades de seu pai, a obrigando questionar quando ele iria voltar.

Sua mãe foi curta, as palavras saíram fria como o clima que havia se instaurado desde a partida do seu marido: ele não irá voltar, Louise. Não há como negar, a possibilidade que a ideia dita passou, parecia tão real que assustou a garotinha de apenas três anos, ecoando por minutos em sua mente, a fazendo perder a fome.

- Ele irá voltar. – Lou disse. Soou quase inaudível, as letras se formando de forma embaraçosa no meio de seus dentes de leite. – Ele me ama.

Amor. Era tudo o que importava, certo?

Após uma noite agarrada ao ursinho que ele havia deixado e choramingando em baixo do seu coberto, no dia seguinte, assim que o sol nasceu e sua mãe saiu para trabalhar, Louise correu em seu guarda-roupa, pegou sua mochila e guardou algumas vestimentas, as que ela mais gostava. Sua blusa de frio alaranjada com o ursinho pool foi a primeira a ser escolhida. Ela pensou que se seu pai não iria voltar para ficar, para morar naquela casa com a família, significava apenas uma coisa: que ele iria buscá-la em algum momento.

Louise acreditava fielmente nesta ideia: que seria pega por seu pai em qualquer instante e iria embora para o lugar que ele tenha escolhido ficar. Se aquela casa era assombrada o bastante para ele permanecer nela, e se isso significava que não era feliz, Louise poderia ir para qualquer outro canto do mundo que o deixasse bem. Porém, ela não queria deixar sua mãe sozinha, porque abandono não significava amor - embora tenha sido a exata coisa que seu pai tenha feito a ela, como sua mãe poderia viver naquela casa sem ninguém, em completa solidão? Pensou ela ao ir ao quarto de sua mãe que cheirava sabonete de lavanda e arrumar também as malas dela. No fundo, ela sabia que não conseguiria viver feliz sem nenhum dos dois.

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⏰ Última atualização: Oct 20, 2020 ⏰

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