Niatsimba Mitota cresceu numa região empobrecida do Município de Dondo. Sua terra, Moçambique é também chamada de "pérola do índico". Niat via muitas pérolas nas bocas dos amigos que corriam pela rua de pés descalços chutando pequenas pedras pelo caminho imaginando finais de campeonatos em que toda Dondo teria parado para assistir. Niat tinha sido um menino franzino, cabelos ralos raspados e cheio de imaginação. Gostava de estar com os amigos pelo fim do dia após as aulas da senhora Jendayi como gostava de ouvir as histórias que lhe contava seu avô Jafari. As histórias do avô, tinham som do arrastado dos pés cansados pelo quintal da casa, som do latido de Pont e cheiro de bolo de fubá.
"Niatsimba, você sabia que nossa família é de grandes caçadores?", dizia seu avô, enquanto riscava com um graveto símbolos no chão, grandes e circulares que se encontravam sem deixar pontas soltas, a medida que a história avançava. Jafari era um homem alto como um forte carvalho, de braços longos e ainda ágeis, uma barba branca que recém aparada deixava sempre o aspecto de que havia comido algum doce muito açucarado. "Niat, certa vez nosso ancestral, Kwame saiu para caçar, com muitos cachorros, se perdeu e anoitecendo, encontrou uma bruxa. Escura como a noite e só com um dente na boca, como uma pérola. Brilhando como a Lua. A bruxa ofereceu a casa para Kwame descansar. Kwame se ajeitou de tal modo que seus cachorros deitaram próximos. Pela madrugada, a bruxa agarrou um pedaço de ferro, esquentou nas brasas de um Caldeirão e tentou furar Kwame que dormia profundamente. Os cães rosnaram e afastaram a bruxa. Isso se repetiu por muitas vezes naquela noite, sem que a bruxa tivesse sucesso. Amanheceu e vendo a refeição escapar, a bruxa armou mais uma artimanha, pedindo a Kwame que colhesse algumas frutas numa das árvores de seu quintal. Subindo o dono, os cães foram correr distraídos. Nesse momento a bruxa avançou e disse, "Agora não me escapa, vou roer essa madeira com meu dente e derrubando te devoro". Kwame assustado, continuou a subir o máximo que pode na árvore diante do horror da velha que mordia com vontade nacos da árvore. No alto da árvore, viu que os cães estavam distantes, mas que podia pular para uma outra árvore do quintal da bruxa. Pulou sem demora para espanto e raiva da bruxa que revigorou a vontade de devorar Kwame. Kwame ficou pulando de árvore em árvore, enfurecendo a bruxa. Até o momento em que bem roídas, uma das árvores caiu, mas sem derrubar o caçador que conseguiu se agarrar a um galho próximo. O barulho alertou os cães que vieram sem demora e morderam muito a bruxa que dolorida fugiu.Kwame se salvou e formou família até o ponto em que chegou você, Niat. A bruxa ainda anda por aí, devorando aos nacos pedaço de árvore, desejando nossa carne."
As histórias do avô rondaram sua cabeça na manhã em que chegou no Brasil. A lembrança da mãe orgulhosa do filho, os amigos que juntaram e vieram para Beira num último encontro. Vinha para concluir estudos na área de matemática, em um programa de bolsa da Xiamtec, uma starter brasileira que buscou talentos na África para avançar em muitos segmentos e que fez parceria com universidades brasileiras. Os nove meses de aulas teóricas fizeram Niatsimba ter duas certezas: não seria na matemática, mas na programação a área que iria prosseguir e trabalhar e que nos três primeiros meses de estadia, tudo ficava melhor no fim da tarde, com um copo de cerveja com os amigos brasileiros.
Niat, empolgado por todas as novidades, passava horas escrevendo no caderno de notas que levava sempre no bolso. Passava pelos laboratórios, observando as pessoas, as ideias. Não era extrovertido agora com 20 anos, como nunca o fora lá entre os meninos em Dondo, mas em pouco tempo já era um rosto bastante conhecido no Campus. O "africano", depois "Simba" pela lembrança de alguns daquele desenho antigo da Disney e por fim, voltou a ser Niat.
Pelo tempo de apresentar seu trabalho de conclusão de curso, teve um sonho com o Avô. Estava de volta em Moçambique. De volta, mas num cenário terrível. Em cima da árvore dos contos do avô, com a bruxa roendo a madeira, braços secos agarrados ao tronco roído e cada vez mais próxima do seu intento, pois dessa vez não havia cães para afasta-la. Tentou gritar, mas não tinha voz, um medo cada vez maior, subiu até a copa da árvore e olhando para o alto, viu o avô que flutuava no ar e lhe esticou os braços, um sorriso largo. Agarrou a mão do avô e sentiu um estremecimento de todo o corpo. Acordou. Não dormiu mais, em parte pelo medo de ter novos pesadelos antes de apresentar suas ideias diante do Comitê, e pela sensação presente do avô.
"Chamo esse sistema operacional de Pearl, como podem ver pela sequência na tela dos senhores e senhoras, a inicialização está estável, os bugs iniciais do programa foram quase que totalmente removidos e a interface de usuário é o único ponto ainda em processo de desenvolvimento. Esse ponto em aberto do projeto, aponta para o seu uso em mais de uma plataforma. Configurei o sistema para ser ativado nos smartwatchs da Xiamtec e na cpu que vocês veem a sua frente." mencionou um nervoso Niat, entre o acerto do nó da gravata e as mãos que iam aos bolsos para disfarçar o nervosismo.
Não recebeu aplausos calorosos, mas graduou-se. Ao final da reunião enquanto desfazia a serpente corporativa em volta do pescoço, recebeu um tapinha no ombro e virando-se para ver de onde vinha, foi apresentado pelo seu orientador ao financiador de sua bolsa, o próprio presidente da Xiamtec, Fernando Keigo.
"Acredito que agora podemos falar do valor que sua pérola tem." Soltou em um tom afiado, o homem se cabelos lisos e acinzentados, traços orientais, baixa estatura e corpo que denotava um corte de terno que visivelmente mostrava a distancia com a roupa de Niat.
"É um prazer senhor Keigo, como eu apresentei a viabilidade..."
"Vamos almoçar primeiro rapaz, nesse horário, falar de qualquer coisa é bobagem sem algo para forrar o estômago." Interrompeu, Keigo já apontando para a porta do hall.
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Orun
Science FictionPodem os céus salvar um povo, podem os ancestrais lutarem mais uma vez ao nosso lado? As respostas estão no Orun