Ayla revirou os olhos pela milésima vez quando Alice deu outro pulo de alegria. Ela, por outro lado, parecia mais animada com a ideia de ficar em casa e não fazer absolutamente nada, a não ser talvez — se lhe fosse permitido pelo mesmo — acariciar Félix, seu gato mal-humorado, enquanto devorava uma tigela de doces.
Ayla já tinha participado de outros dias como aquele e era surpreendentemente tedioso o quanto tudo se repetia ano após ano. Por outro lado, Alice finalmente tinha altura suficiente para ir em todos os brinquedos, o que Ayla supôs ser o motivo de tanta animação, mas tinha noção de que não valia toda àquela expectativa.
— Ayla, Alice! Vamos!
Ouviu sua mãe no andar de baixo, chamando-as. Alice correu e o vestido rosa ondulou no ar quando ela saltou do penúltimo degrau para o piso de madeira. Ayla estava logo atrás, descendo os degraus sem ânimo algum.
— Vamos lá, Ayla! Sorria! Você sempre adorou ir ao parque. — Sua mãe tentou, sem sucesso, reacender a paixão dela pela ocasião.
Ayla se limitou a esboçar um pequeno sorriso enviesado. Sua mãe não estava errada. Ir ao parque era, de fato, sua ocasião preferida, mas o sentimento tinha se perdido ao longo do tempo mesmo que algo no lugar ainda lhe parecesse mágico.
Saíram de casa e, enquanto Alice puxava a mãe alguns metros à frente com o vestido rodado cor de rosa — que ela insistira veementemente que precisava usar naquela ocasião — ondulando com a brisa, Ayla seguia indiferente à tudo, limitando-se a cantarolar algumas músicas conhecidas.
O parque ficava perto, apenas alguns quarteirões depois, então, não demorou muito para chegarem. Estava cheio como nos anos anteriores e Ayla se sentiu meio deslocada com seu humor decadente em meio a euforia que perfumava o parque.
Ficou para trás, afastada da fila quilométrica que se formava, enquanto a mãe e a irmã se aventuravam no meio de tantos corpos para conseguir os ingressos.
Ayla desviou o olhar, perdido nos rostos próximos mesmo sem realmente gravá-los, quando uma silhueta pequena chamou sua atenção.
Um gato desfilava entre os pares de pernas com a cauda felpuda movendo-se suavemente de um lado para o outro. Olhava para os lados como se procurasse alguma coisa e Ayla pensou ter visto uma mancha branca em formato de coração na lateral do bichano antes dele desaparecer entre a multidão. Não teve muito tempo para pensar sobre porque a mão pequena de Alice entrelaçou-se a sua e puxou-a com uma força que nem sabia existir na garotinha.
— Vamos na montanha-russa, Ayla! — Sacudiu o braço da irmã aos pulos.
Ayla pensou que, por mais que não estivesse nem um pouco animada, não custava nada ao menos acompanhá-las nos brinquedos. Então, seguiram para a montanha-russa e acabaram indo duas vezes seguidas quando Alice, mesmo trêmula, implorou para ir de novo.
Logo em seguida, Alice decidiu que o carrossel seria uma boa pedida e, enquanto ela rodopiava no cavalinho multicolorido e a mãe tirava fotos, Ayla voltou a ver a figura elegante do gato, deixada de lado há pouco tempo.
Vinha em sua direção e ao encará-la com os olhos amarelos, Ayla vislumbrou algo de reconhecimento nas pupilas dilatadas. Talvez fosse algum dos gatos que viviam brincando com Félix e que ela havia enxotado do jardim de casa? Não saberia dizer. O gato aproximou-se e roçou a pelagem negra e macia em suas pernas.
— Oi, gatinho. — Agachou-se e acariciou-o atrás da orelha, um dos lugares em que sabia que o carinho seria apreciado. — Está perdido?
Ayla olhou para os lados, buscando alguém que parecesse procurá-lo. Ele provavelmente estava perdido e o carinho era apenas um pedido implícito de ajuda. O gato, contudo, não se dando por vencido, mordeu-lhe a mão sem força suficiente para machucá-la e se afastou a passadas rápidas.
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Sob o eclipse
Short StoryNuma ida ao parque de diversões da pequena cidade onde mora, Ayla vai descobrir que há muito mais sentimento nos grandes corpos celestes do que ela imagina. Guiada por um peculiar ajudante, ela vai descobrir que o amor, assim como a astronomia, vai...