Prólogo

240 7 0
                                    

1935

Uma chuva torrencial caía do lado de fora, as gotas de água escorriam pela janela de vidro rapidamente. O quarto era pequeno e um tanto rústico, com a tinta descascando das paredes brancas e poucos objetos de madeira no local tal como uma escrivaninha e um baú para roupas; alguns retratos decoravam a parede e uma cama de solteiro no centro, estava velha, julgando pelo estado de seu colchão.

Um raio rasgou o céu, rapidamente seguido por um estrondoso trovão que fez com que os retratos na parede estremecessem ligeiramente. Não tardou muito para que outro raio caísse. A luz azulada do relâmpago iluminou todo o quarto fazendo com que as duas figuras sobre a cama se tornassem, enfim, visíveis. As molas do colchão rangiam ruidosamente a cada movimento, e as roupas foram simplesmente jogadas no chão de madeira.

A respiração dos dois era pesada, com alguns gemidos baixos escapando por entre os lábios. Ambos eram jovens, provavelmente não passavam dos 19 anos. Um tinha a pele parda, com o corpo pouco mais musculoso que seu parceiro e seus cabelos eram cor de mel, os quais passavam um pouco da altura das orelhas. O outro rapaz, no entanto, era seu exato oposto: Pálido, magro e de cabelos louro-platinados na altura dos ombros.

– Da próxima vez... – Disse o de cabelos loiros, respirando com dificuldade e um sorriso nos lábios. – Da próxima vez, eu fico por cima.

O outro abriu um largo sorriso, deixando seus dentes brancos à mostra.

– Vai sonhando. – Respondeu.

E se curvou por cima do parceiro, indo de encontro com os seus lábios. O beijou carinhosamente e aumentou o ritmo dos quadris. O loiro apertou os olhos, entrelaçando os dedos nos cabelos do outro rapaz. E gemia, sentindo que estava cada vez mais perto do êxtase.

Campo de Concentração Auschwitz I.

Oświęcim, sul da Polônia.

03 de Maio de 1942.

Estava um dia horrível, frio e cinzento. O sol se escondia atrás de nuvens negras de chuva, e ele já não se lembrava da última vez que tinha visto um dia ensolarado naquele lugar. A chuva caía fina e rápida, parecendo pequenas navalhas ao tocar a pele. As gotas de água escorriam pela aba do seu chapéu toda vez que baixava a cabeça e não podia dar um passo sem afundar os coturnos na lama.

Sebastian Keller foi encarregado de trazer os novos prisioneiros para o campo. Trajava o tradicional uniforme Schutzstaffel: Um meio-fraque negro com um cinto envolto na cintura, por baixo uma camisa branca somada a uma gravata preta; calças pretas, coturnos de canos longos e um quepe preto incrustado com a águia nazista e uma caveira, símbolo da própria SS. As únicas coisas que se destacavam no meio do seu uniforme negro eram a braçadeira vermelha com a suástica, que todos os oficiais trajavam orgulhosamente no braço direito, e as insígnias no peito, mostrando sua patente de Coronel. Keller era jovem, apenas 25 anos e provavelmente o homem mais belo de toda SS. Alto e pálido, com os cabelos loiros passando dos ombros, encharcados por causa da chuva e olhos azuis penetrantes.

Auschwitz I era um campo extenso com mais de 20 pavilhões, o maior dos três complexos de Auschwitz-Birkenau. Centro administrativo e base da SS na Polônia, todos os oficiais de patentes mais elevadas circulavam pelo local. Apesar de não ser um campo de extermínio propriamente dito (Essa tarefa coube a Auschwitz II), as mortes ainda eram frequentes.

Keller já estava na Schutzstaffel há mais de cinco anos e naquele campo desde sua construção em 1940, mas isto não impedia de seu ódio pelo lugar crescer mais a cada dia que passava. Detestava cada pequena coisa ali. Odiava as cercas de arame farpado marcando os limites do campo e os tijolos cinzentos dos prédios que davam a impressão que ali não existiam cores, não existia vida; odiava a marcha tocada toda vez que os prisioneiros trabalhavam e do barulho que seus martelos faziam. Já se acostumara parcialmente com o cheiro fétido de cadáveres incinerados nas grandes fornalhas ou simplesmente deixados em uma grande vala ao lado de fora. Porém, toda vez que ouvia os gritos de desespero vindo das câmaras de gás, seu peito apertava imensamente. Mas aprendeu a vestir uma máscara fria todos os dias. O dever o chamava.

A morte o chamava.

Com um pequeno gesto ordenou a abertura da entrada. Grandes portões de ferro com as inscritas “Arbeit Macht Frei” (“Só o Trabalho Liberta o Homem” em alemão).

Por volta de 60 pessoas adentraram o campo de concentração. Homens, mulheres, e por vezes até famílias inteiras em suas roupas de inverno esfarrapadas e sujas. O som dos passos dos prisioneiros era sincronizado, chegando aos ouvidos de Sebastian como uma marcha fúnebre. Os novos prisioneiros se direcionavam para o bloco dois, onde seriam tirados seus pertences, os cabelos seriam raspados e as roupas substituídas por uniformes listrados em branco e azul. A partir dali, esqueceriam seus nomes e números tatuados nos braços passariam a ser sua única identificação.

Subitamente, uma jovem que não devia passar dos 17 anos caiu no chão e ali ficou, obrigando a multidão atrás de si a parar. A garota chorava copiosamente, debruçando-se sobre a lama e não dava nenhum sinal que levantaria dali cedo.

Não demorou a um oficial tomar alguma providência, dirigindo-se até ela com uma submetralhadora em mãos.

– Levante! – Gritou para a menina, a voz forte e grave.

Keller o conhecia. Era Hanz Müller, um jovem ruivo com uma leve franja em seus olhos, bem apessoado e um tanto megalomaníaco. Não estava ali há tanto tempo quanto o Coronel, mas Keller o considerava um soldado perfeito, muito diferente de si próprio.

A moça limitou-se a fita-lo. Tinha cabelos castanhos e longos, ensopados da chuva e a roupa manchada de lama marrom. Sua respiração era pesada, estava demasiado assustada para falar, muito menos para levantar.

– Levante! – Gritou novamente Müller.

Outra vez não obteve nenhuma resposta além das lágrimas que rolavam pelo rosto redondo da jovem. Hanz não era conhecido pela paciência, logo apontando a arma para a testa da prisioneira.

– Basta. – Disse Keller calmamente, aproximando-se.

O garoto franziu o cenho. Abaixou a arma e bateu continência para o seu superior.

Sebastian curvou-se levemente e estendeu a mão enluvada para a jovem. Ela parecia perplexa, como se não acreditasse no que seus olhos viam. Levantou com a ajuda do Coronel e pôs-se a andar, fazendo com que a fila também voltasse a prosseguir.

Alguns oficiais estavam perplexos com a sua ação, principalmente Müller.

Existiria mesmo um anjo no meio do inferno?

Fire Your GunsOnde histórias criam vida. Descubra agora