Eu gostaria de dizer que essa história tem um final feliz.
Mas não se mente em uma obra biográfica.
Eu também gostaria de dizer que todos que começaram comigo essa história que vou lhes contar viram seu final trágico, mas, mais uma vez, eu estaria mentindo. Essa história não é um conto de fadas, com mocinhos bonzinhos, donzelas indefesas e torres protegidas por dragões possessivos e superprotetores; eu poderia afirmar com toda a certeza deste mundo e de qualquer outro que não. É uma história de homens e mulheres fortes, leais e verdadeiros, e de sua jornada por esse mundo egoista e desleal. Sejamos sinceros, é uma descrição muito mais empolgante do que a do conto de fadas que você achava que iria ler. É apenas um relato, influenciado algumas vezes pela minha pobre mente frágil da época. Já se passaram mais de trinta anos desde o acontecido em Pearling Town, e não há um dia em que eu não deite minha cabeça no travesseiro do lado direito da cama e não pense naquela cidade, nos que conheci e convivi durante bons anos da minha juventude; no que considerava certo, no que não, no que achava que sabia e o que não. Depois de tanto tempo, você acaba vendo as coisas por um ângulo bem diferente. Eu era uma jovem idealista, que não tinha muita noção do que idealizava, na realidade; tinha uma breve ideia do que queria, mas nada muito centrado e muito medo de não tornar em realidade aquela minha utopia fantasiosa.
Eu não era, de maneira nenhuma, a garota normal para os padrões comuns, que meus pais sempre quiseram. Eu gostava de coisas estranhas, de experimentar o mundo do meu jeito. Mesmo ainda sendo considerada a garota prodígio da escola, eu era toda errada: alcoólatra, quase desenvolvendo um vício em drogas e com os níveis de antissocialismo altíssimos. Vendo hoje, acho que eu usava o álcool e as drogas como um meio de aliviar aquela vida focada nos estudos. Eu me sentia muito mais viva enquanto virava garrafas de vodka e cantava até o sol raiar diante de uma fogueira na floresta do que quando terminava de ler pela oitava vez o livro de biologia. Quando entrei na faculdade de Medicina, tive que abandonar boa parte desses vícios. Deixei as drogas e o álcool para trás, e meu antissocialismo diminuiu consideravelmente. Mantive meus amigos antigos, e consegui fazer alguns outros. Sendo assim, levei uma vida comum até os 22 anos de idade.
Foi no quarto ano da faculdade que a merda aconteceu.
Um dos meus amigos mais antigos, James Monkley ("Monkey" para os amigos), começou a se meter com uma galera bem fodida. O meu grupo, mesmo sendo ligado a essas coisas, sempre tentou se manter longe. Eu já havia tido meus encontrões com a polícia, mas escapei da maioria. Nós do grupo tinhamos um trato: éramos só nós e mais ninguém que não fosse de confiança. Escapamos de muita merda fazendo isso. Mas eu sabia, pelo que Monkey mostrava para nós quando estava bêbado ou fumava, que algum dia ele ainda iria nos meter numa encrenca. De todos nós, eu sempre senti que ele era o mais instável.
Na noite mais chuvosa do ano, ele e um cara de fora do grupo tentaram assaltar uma joalheria, e Monkey fora atingido por duas balas. Como ele e o parceiro sabiam que eu fazia medicina e poderia ajudar, os dois apareceram na minha casa. Eu não poderia simplesmente deixá-los ali, na chuva; coloquei os dois para dentro de casa e cuidei de Monkey. Foi quando eu comecei a cuidar do comparsa que a polícia apareceu. Eu tentei argumentar, dizer que foram somente primeiros-socorros, que eu não poderia deixar que o cara morresse no capacho da minha porta. Mas, mesmo assim, fui incriminada. Minha cara ficou estampada na primeira página do jornal da cidade em que eu morava na época, junto aos seguintes dizeres: "Neta do ex-prefeito Bell vai presa, acusada de ser cúmplice de assaltantes". Meus pais se recusaram a me visitar na cadeia, e admito que não senti falta deles nem um segundo sequer. Mesmo que ambos tentassem ser pais presentes, eles nunca conseguiriam ser. Eles trabalhavam demais, e o tempo para mim foi diminuindo substâncialmente. Com 16 anos, eu só os via andando na rua e acenava pensando "olha, é a minha 'mãe'". Éramos três estranhos que moravam juntos, um casal na meia-idade e uma adolescente. As palavras "pai" e "mãe" perderam o sentido, conforme o tempo passava; depois de certo ponto, eu me referia a eles apenas como Susan e Harry. Eu sabia que era sozinha no mundo, e pouco me importava se eu continuaria assim ou não.
Mas felizmente, eu não sou a única em toda essa história. Temos outros personagens, que também precisam ser apresentados. Porém, antes, eu devo terminar esse capítulo.
Não sei quantos dos que estão lendo esse texto souberam o que, de fato, aconteceu no incidente de Pearling Town. Foi algo pouco noticiado - mais pelo medo da reação da população do que pela ausência de fontes, algo também escasso. Também não sei quantos escaparam, assim como eu; e quantos realmente sabiam o que de fato acontecia, antes do crescendo horrendo que se sucedeu naquele dia ensolarado de 2012. Dentre tantas incertezas, uma me preocupa mais.
A de o que irá me acontecer quando essas palavras chegarem aos ouvidos do governo.
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Bell
ActionEu gostaria de dizer que essa história tem um final feliz. Mas não se mente em uma obra biográfica.