Rogério já fechava a porta do consultório quando Seu Juvenal apareceu: ―Tarde, dotô! Já tá fechando? Aaah, minha filhinha tá com uma baita dor de dente...
O vento uivava acima deles, estremecendo as telhas de barro do velho casebre que atendia as pessoas naquele lugar nos rincões do país. Olhou para a menina baixinha e magricela com cabelo preto crespo preso em maria-chiquinhas ao lado do pedreiro cheio de cal e cimento seco tanto nas roupas como nele mesmo. Poderia muito bem despachar os dois e ir se enfiar em seu quartinho de pensão, mas numa cidadezinha como aquela, sabia que isso só alimentaria sua fama de antipático. -Entrem, vou dar uma olhada nela.
O homem de boné sujo agradeceu, conduzindo a filha: ―Tem medo do dotô não, ele é bonzinho, viu?
Rogério forçou um sorriso para eles. De qualquer forma, não havia muito o que fazer ali: gastava seus dias a amaldiçoar as moscas pousadas sobre as janelas e na traseira dos cavalos amarrados à sombra das árvores. "Passe num concurso, mude-se para uma cidadezinha do interior, faça seu pé de meia, depois volte em dois anos e torre tudo" foi o conselho que lhe deram. Não senhor; nem que torrasse tudo em drogas, não tinha dinheiro que compensasse aquele tormento: não havia restaurantes lá, apenas a quentinha da Dona Milu; nada de shoppings, quadras esportivas ou clubes, no máximo uma pelada de rua e o único passeio que ele poderia dar ali era uma volta pela pracinha da cidade, onde os aposentados se reuniam para jogar dominó ou porrinha e as crianças apostavam figurinhas no bafo. Até mesmo as garotas não eram muitas, a maioria já era casada, jovem demais ou ambas as coisas. Um lugarzinho encantador aquele.
―Só esperem um pouco. ―Apontou para as coisas na salinha de espera que só os locais poderiam chamar de cadeiras. Arrumou os instrumentos na bandeja, reabastecendo o algodão e a água oxigenada. Se pelo menos sua assistente não tivesse se mandado assim que viu o tempo piorando...Chamou-os.
Seu Juvenal fez um novo aceno com o bonezinho surrado sob os cabelos encarapinhados. O conhecia da reforma no hemocentro do município vizinho. Era um bom sujeito, sempre ajudando, até mesmo doando sangue quando podia. -Essa danadinha aqui foi sozinha até meu trabalho, num tava se guentando de tanta dor...-ele falava com aquele sotaque jeca bem carregado.
-Que idade ela tem?
-Sete anos.-ele respondeu.
Se abaixou até a garotinha: ela e o pai tinham os mesmos olhos castanhos vivos e o mesmo tom de pele escuro. -Vamos olhar esses dentinhos, querida?
Colocou as mãos sobre o encosto da cadeira odontológica, chamando-a. Só depois de muito insistir e de mais cochichos do pai foi que ela veio. Pirralha medrosa. Estava acostumado a ser o terror da região e bicho papão de escolha das mães que queriam forçar higiene bucal nos filhos, mas já estava ficando sem paciência. Rogério colocou as luvas, a touca e a máscara, sentando ao lado dela: ―Qual o seu nomezinho, meu bem?
―É Natasha.
―Que nome mais lindo. ―comentou, apanhando o espelhinho e a sonda.
―É diferente, né?― O pai sorria com os cacos dos incisivos.
―Nem tanto... É até bem comum lá na capital. Deve ser por causa daquela música...
―Que música?
―Aquela: Era Ana Paula, agora é Natasha, usa salto quinze e saia de borracha...― cantarolou um trechinho, mas Juvenal apenas balançou a cabeça, mascando.
―Conheço essa não.-Ele levou a mão aberta até o nariz, fungando:― isso foi ideia da mãe dela, a Mircalla.
―O quê? Pode abrir a boquinha, querida. -pediu à menina, que relutava, os olhos escuros a fitá-lo com desconfiança. Vivendo daquele jeito quase selvagem, era normal que fosse assim, concluiu, mostrando: ―Com esse espelhinho eu vou examinar os seus dentinhos. Vamos, abre a boquinha pro tio ver esse sorrisão... Qual era mesmo o nome da sua esposa?
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O Dentista (conto)
HorrorRogério, um dentista entediado numa cidadezinha do interior, descobre que as coisas talvez não sejam tão pacatas assim por ali quando aceita atender Natasha, uma menina com passado incomum e um sorriso mais ainda.