Estou aqui novamente, nesse banco de carro me sentido exausto e com minha cabeça apoiada no vidro, parece que o tempo passa entre meus ossos e músculos, e sempre me vejo nesse banco mais uma vez, parece que vivo eternamente aqui, sinto meus pés afundarem e serem corrompidos por esse tapete de borracha logo abaixo, penso que vou morrer e o primeiro verme que roerá minha carne gélida e podre sairá de dentro desse estofado. No banco da frente olho meio sonolento e vejo meus pais, não consigo ouvir o que estão falando graças a música que toca no meu fone de ouvido, assumo que estão brigando por algo fútil, como eles tem feito nesses 16 anos em que estou respirando, eu nem ouço o que gosto mais, só algo alto suficiente para não escutar uma palavra proferida por nenhum dos dois. Ao meu lado, minha irmã dormindo um sono profundo, com a boca aberta escorrendo uma baba que em seu macacão rosa, apesar de achar nojento, sinto falta disso, essa despreocupação e ingenuidade de quando somos menores, sem ter o mínimo conhecimento de como esse mundo pode ser um lugar ruim e caótico e como estamos caminhando lentamente para um doloroso fim, tanto social quanto individual, somos uma bomba relógio e fazemos de tudo para explodirmos o mais rápido possível. Na troca de músicas ouço a voz do meu pai falando meu nome em um tom alto, hesito em tirar os fones, parece que meus dedos se retorcem e meu osso quebra para eu não tirar os malditos fones, quando retiro ele está bravejando:
-Porra estou te chamando a 5 minutos e você com essa merda no ouvido, acorda sua irmã estamos chegando
Parece que cada palavra que saía de sua boca tinha um tom perfurante que adentrava meu cérebro e o esfaqueava, estendi meu braço e tentei de leve cutucar minha irmã, ela acordou com um susto e engolindo ar, me pergunto como não se despertou com a intensa gritaria que devia ter acompanhado meus pais ao longo da viagem. Voltei a encostar minha cabeça ao vidro frio e gelado, acho que está uns 5 graus do lado de fora, observo as grandes árvores com um verde acinzentado cobrindo suas folhas, me pergunto se elas podem sentir tristeza, o céu estava nublado com partes negras nas nuvens, criando um clima pálido e cinza, tudo estava simplesmente cinza, e se o tempo só estiver refletindo os sentimentos em minha mente? Paro com os pensamentos egocêntricos e fecho os olhos, a enxaqueca está cada vez mais pulsante, como se ondas carregadas de dor fossem indo e voltando dentro da minha cabeça. O carro subitamente freia, me deixando com certa náusea, olho para o lado, vejo a mesma imagem que já havia visto incontavelmente desde que adquiri consciência, a casa amarela meio desbotada, no meio do nada rodeada de árvores, ela pertencia a meus avó, porém os dois já não estão mais entre nós, acho que ainda utilizo esse eufemismo para tentar me conformar um pouco com a perda. As vezes me pego pensando naquele dia como se meus sentimentos estivessem congelados eternamente naquele momento e nunca evoluíssem, suicídio não é algo muito fácil de lidar, ainda mais de duas pessoas que você amava e admirava profundamente, o que porra pode ter acontecido? O que fez os dois sem motivo aparente ligarem o gás e simplesmente irem dormir? Não consigo achar motivos nem respostas, deve ser por isso que estou preso aquele dia, sinto que estou recebendo a noticia repetidamente, como se fosse um soco forte no peito, mas quem o deu também estava segurando uma faca.
Desço do carro, mal sinto meus pés tocarem aquela grama seca, estavam muito dormentes, minha irmã já sai correndo do carro, gritando, como pode ter toda essa animação me pergunto, ainda mais estando prestes a entrar em um local que aconteceu algo tão horrível, claro ela era muito pequena para entender algo, mas como não consegue sentir esse peso tão esmagador e tortuoso emanado por essa casa. Meu pai caminha lentamente, pisando nos galhos já secos parando em pé ao meu lado olhando para essa grande residência com um olhar triste e cansado, como se fosse um fardo tudo aquilo, mesmo após tudo ele continua o ritual de regressar até essa casa todo inverno, talvez uma homenagem para seus pais? Ou uma forma de tirar o peso de ter sido tão negligente e não ter visto que eles prestes a fazer o que fizeram? Bom acho que nunca saberei a resposta, não consigo trocar cinco palavras com meus pais sem minutos depois estarmos brigando e gritando.
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Tired
Mystery / ThrillerEstá é uma história onde você vai entrar em uma mente bem desolada e solitária, onde os horrores do dia a dia ganham forças a cada pensamento.