O Filho da Noite

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O rapaz flutuava no mar, como se fosse parte deste e o seu corpo claro, como as ondas, incorporava-se na água, transformando-se parte da paisagem para aquelas que o observavam. As meninas riam perante a beleza daquela pele brilhante coberta de desenhos negros. A mais velha do grupo afirmava que era o rapaz mais bonito que alguma tivera visto e ninguém se acreditava na oportunidade de o voltar a mirar.

Os olhos de Thomas eram descritos como uma beleza da mãe natureza, as pessoas tentavam, mas nunca ninguém conseguiu afirmar com certeza quantos tons de azul e verde aqueles olhos guardavam. Era conhecido como o príncipe dos tempos modernos, que tinha o sorriso mais encantador que pisara aquela terra. Por anos, ele foi tudo o que se falou, depois, como todas as outras belezas, acabou por ser esquecido. Alguns conterrâneos diziam que o jovem se tinha perdido nas loucuras e predições da grande cidade, que nunca haveria de voltar à sua origem e quando os seus pais perderam a vida durante o inverno de forma súbita, todos os habitantes assumiram que o herdeiro tinha então perdido todas as razões para voltar. No entanto, contra todas as certezas, o rapaz voltou como se nunca tivesse partido.

A passagem das raparigas na praia não se alongou muito mais e horas depois toda a vila sabia do regresso. Já ao final da tarde, inúmeras eram as pessoas que seguravam flores, refeições caseiras e até algum dinheiro que se reuniam à porta da mansão dos Brown. Um burburinho criou-se, todos eles falavam da estranheza do seu regresso, da perda que a morte daquele casal trouxe à comunidade e como era magnífico a vila voltar a ter um duque. Pessoas que o viram crescer não sabiam se o tratariam por Duque Thomas, Duque Brown, Sr. Brown ou só Thomas, porque no fundo ele era um filho da terra criado por todos eles.

Quando as portas da mansão finalmente se abriram, as pessoas entraram e organizaram-se dentro desta com a ajuda dos guardiões da casa, que não estavam tão surpreendidos como todos os outros. O casal eram as pessoas mais leais aos Brown, a própria Judith havia criado Thomas como se de um filho dela se tratasse. Foram os únicos que souberam da vinda do duque à vila e esperaram uma semana pela sua chegada, foram os únicos que o receberam e que sabiam qual era a razão da sua visita.

Thomas finalmente pisou a sala em que já descansavam todos os outros, foi recebido com saudade e tristeza, que rapidamente passaram a uma alegria amarga. As pessoas que se reuniram para abraçar o rapaz, não só pelo seu regresso, mas também por lamentar a morte de seus pais, notaram que o jovem estava diferente. Não era mais quem partiu para se formar e tornar-se um herdeiro honrado, as suas leves feições foram substituídas por ângulos acentuados, o rosto de menino já não existia, tudo o que era possível ver era um rosto adulto. Questões se formaram, ninguém conseguia afirmar que aquela era a única diferença. Será que o rapaz que todos eles conheceram partiu? Juntamente com a sua humildade, simpatia e ambição de um futuro melhor? A verdade é que a imagem ali passada era essa mesmo. As trocas de palavras não passavam de uma conveniência inclinada para a obrigação, nunca por ele uma conversa foi iniciada e todas as suas respostas eram sucintas, quem viera para descobrir detalhes da sua estadia na grande cidade partiu com muito poucas informações ou nenhuma. Quem rapidamente correu para a moradia, ainda mais rapidamente saiu. As ofertas foram agradecidas, mas esquecidas na mesa de centro. O último Brown não tinha tempo para formalidades, principalmente aquelas que atrasavam a sua missão.

Foi com as suas energias a falhar, que Thomas saiu também da mansão, tinha um longo caminho pela frente, para ser percorrido numa noite curta. Os aldeões que seguiam para casa a pé surpreenderam-se quando viram o rapaz com um longo casaco preto a passar por eles no seu tão conhecido cavalo branco. As grutas dos anjos aproximam-se e Brown cada vez mais queria voltar à mansão, aquilo que ao início parecia um desejo concedido, agora parecia uma maldição. Sempre quis voltar às suas origens, mas o seu tempo na capital deu-lhe uma nova perspetiva da realidade que ele não queria abandonar.

Já na entrada da famosa gruta, o cavalo parou sem ordens e recusou-se a entrar, obrigando o duque a descer. Ele deixou em cima do pelo branco o seu casaco, juntamente com a sua camisa e deu os primeiros passos dentro da gruta. Uma luz dourada brilhava e o rapaz limitou-se a segui-la.

- Irmão Gadrel, é bom finalmente encontrá-lo. - O seu verdadeiro nome foi acalmado e um sentimento agridoce correu a sua espinha. Era bom recordar, muitas foram as coisas que adquiriu com aquele nome, tudo parecia longínquo agora; no entanto, apesar de hoje ser o dia da sua redenção, ele sabia que voltaria atrás e faria tudo igual. - Os seus pecados foram imensos e a sua traição o maior, Deus deu-lhe uma segunda oportunidade para provar a sua divindade e o irmão respeitou as ordens do nosso senhor. Curve-se e um novo tempo de fé o abraçara.

Gadrel, que agora mal correspondia a este nome, já que se tinha habituado ao nome humano, fez o que lhe pediram, curvou-se perante os anjos. A luz dourada que antes parecia ambiente, transformou-se numa estrela interna e as costas do caído quebraram, um grito de dor cobriu as paredes da gruta e as asas que tinha perdido há milhares de anos voltaram a nascer. Os seus pecados e a sua salvação apareciam em centenas de fragmentos perdidos na imensa luz que parecia que o cegava. O seu ato de redenção foi o que durou mais tempo, tivera de matar dois demónios que se apoderam do corpo dos antigos duques. Por momentos, pensou que a imagem se fixara porque teve de tirar a vida aos seus pais da sua curta vida enquanto humano, mas depois a clareza dos pensamentos chegou.

As asas brancas e douradas brilhavam e para qualquer outro caído teria sido o dia mais importante da sua vida, mas não para este. O sentimento de poder que corria as suas veias, permitiu que ele fizesse o imaginável. Gadrel invocou a sua antiga espada de combate e perfurou os peitos dos anjos que lhe deram a salvação, estes transformaram-se num singelo pó que seria barrido com a mais fraca corrente de vento.

As asas que renasceram, arderam num fogo azul e a lenda que sempre ouviu em sussurros atrevidos enquanto crescia em Éden confirmou-se. Um anjo caído que obterá salvação poderia ditar o seu próprio destino. Naquele momento ele sabia que as portas do seu primeiro lar fechar-se-iam para sempre, mas nada o podia parar agora. O poder que antes ele sentia intensificou-se, corria-lhe nas veias um poder que ele nunca tinha sentido antes, o brilho dourado do seu sangue passou a prata e tudo se confirmou, ele tinha-se transformado num filho da noite.

Os anjos que em Éden controlavam as outras dimensões perderam o folgo quando viram as asas brancas e douradas a transformarem-se em pretas e prateadas, eles não sabiam o que fazer agora, o mito era real e ninguém nunca ouviu como se abate um filho da noite. O terror estava instalado e Gadrel brandiu o seu novo nome com fogo, Thomas, o primeiro filho da noite.

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