Capítulo 1

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09' de Dezembro.

Fazia uma neve encantadora na minha vila, Darbu , pequena, apertada, religiosa, sombria, pouco populosa, mas minha. Desde que me conheço por gente, eu sou desta terra, deste frio que enrijece-se o corpo contudo liberta pensamentos.

Num corriqueiro dia, encapo-me com o meu casaco peludo, abro a porta, inspiro a brisa fresca desta madrugada acompanhando a minha passada e numa rotina matutina abro apressadamente a loja do meu avô, com sorte iremos ter clientes hoje, talvez a Mary ou então o John, ou melhor ainda, a encantadora Grace, a mais corajosa e destemida das mulheres, que há 30 anos decidiu deixar as ruas agitadas de Paris, fugir de um marido violento, traiçoeiro e amaldiçoado pelas amarguras pela guerra para ser livre.

— Bom dia minha querida Rose.

— Grace. Estava mesmo a pensar em si. - Corri para abraçar a pequena mulher, com os seus cabelos brancos numa passada rápida e feliz.

— Hoje o dia é esperançoso.

— O que vai ser hoje? A que se deve uma visita tão madrugadora?

— Os meus filhos vêm finalmente visitar-me, os anos passam a correr e entre cartas, postais de natal e presentes simples, mas pensados a mínimo pormenor eles vêm, vêm estar comigo, espero que me possam ter perdoado.

— Tolos seriam se não perdoassem uma mulher como a senhora.

— Espero que esse pensamento seja contagiante e que se espalhe pelos céus até chegar aos meus filhos. Sabes? Ter de deixá-los naquela tórrida noite de emoções foi o doce mais amargo que eu alguma vez provei... - Entre suspiros e culpas de uma mãe, mulher decida a ser livre encarnou o chão. — Eu quis trazê-los comigo, mas o Adam não permitiu, escuta esta velha tonta, jamais deixes que o medo prevaleça à tua vontade de voar. Se te negarem o avião, tens o carro e na falta de carro, arranja uma mota, se não tiveres dinheiro para tanto, uma bicicleta serve, mas meu amor, se te roubarem a bicicleta, caminha. Porque parar é deixar de sonhar e sem sonhos, não somos ninguém.

— Inspiradora como sempre, a Grace desperta em mim todos os sonhos que tenho acumulados. Um dia ainda hei de lhe retribuir tudo aquilo que me ensina, todos os conselhos que me dá, é o mais perto que tenho de uma mãe. - As suas mãos enrugadas tocaram no meu rosto e acariciaram a minha pele.

— Querida, só uma menina doce e meiga como tu para me dar força.

— Você não precisa de força, você é a força. Para uma ocasião tão importante como a de hoje, eu ofereço-lhe a especialidade da casa, a nossa Suksesstert , fresquinha, fiz hoje de manhã antes de vir para aqui.

— Seria fantástico, os meus filhos vão adorar.

— Não se preocupe, eu vou entregar a sua casa quando sair daqui.

— Perfeito, a viagem deles ainda vai ser longa. Eu tenho a certeza que eles vão adorar esta vila, o avó deles cresceu aqui, a minha casa é tudo que eu tenho, as lembranças de uma infância feliz de todas as vezes que vejo o jardim coberto de neve.

— Não se preocupe Grace, eu vou com o maior carinho entregar a torta e dar-lhe forças.

O dia passou muito rápido, entre visita dos conhecidos vizinhos, as 17:00 aproximavam-se e eu estava ansiosa pela hora em que eu possa sentar-me em frente à lareira a ler o meu romance enquanto o meu avô tenta adivinhar qual a palavra que encaixa perfeitamente nas suas palavras cruzadas. Passamos um belo tempo, somos uma equipa perfeita, eu leio muitos livros e ele quer muitas palavras e assim vamos passando os dias, uns dias são mais animados do que outros, quando ele emburrece pela falta de palavras faz um chá quente com mel e conta-me anedotas, outros dias, decide ir pela montanha passear e embora me deixe angustiada, saber que não tenho como o encontrar, eu deixo-o ir, afinal o amor é isso, amar tanto ao ponto de deixar o nosso coração ser livre para ir e voltar.

— Não sei o que faria sem ele. – Murmurei para os meus botões.

— Não me digas que já trocaste aqui o teu velho avô por um galã dos romances que lês.

— Era lá eu neta para isso, o avô é a única pessoa que eu tenho. – Afirmei enquanto beijava a sua face gelada e enrugada.

— Neta, neta, neta, tu és a minha maior alegria e por falar em alegria, parece que temos convidados aquilo na vila. Chegaram uns tipos engravatados com umas mulheres todas emproadas, tu imaginas que a misses vieram de tamancas aqui para a neve? Até onde a vaidade vai.

— Deixo-os para lá, nem toda a gente sabe que por aqui não temos palco para saltos e gravatas, preferimos os sobretudos, as botas grossas e os gorros.

— Eu cá deixo, só espero que não venham arranjar problemas. A gente fina não é de confiança com as suas palavras caras só enganam boa gente como nós.

— Eu nem sequer entendo como é que a gente que se deixa cair na lábia desses mentirosos.

— Mas será que aqui não se apanha internet? Nem rede? Isto é mesmo o fim do mundo. – Disse a donzela emperiquitada, com uns lábios vermelhos berrantes, umas bochechas vermelhas por conta do frio.

— Olga, já te disse, isto não é Milão, é uma aldeola. – O comentário infeliz veio de um engravatado com um sobretudo preto até aos pés com umas luvas de pele na mão.

— Aqui, só tem gente do bem e se é para falar mal da vila, pode dar meia volta. – Disse de forma ríspida e curta, eu nem sequer sei quem é que estes tipos pensam que são, que podem vir até aqui, falar mal da vila e ir como vieram, era o que mais faltava.

— A plebeia ficou irritada por falarmos mal do palheiro. – Os cabelos loiros não engavam ninguém, era uma finória com a mania que é mais do que nós.

— A única plebeia que eu vejo neste estabelecimento é vossa excelência e faça o favor de desamparar daqui, não se aceitam engravatados e emperiquitadas aqui.

— Eu se fosse a você tinha muito cuidado, você sabe com quem está a falar?

— Já chega Olga. – Da escuridão da tarde, surge um homem alto, com os seus olhos cor de mar, mais profundos que os riachos da vila, com o seu tom de pele branco como a neve que cai sobre o céu, o seu perfume fazia-se sentir desde a entrada, um cheiro denso, caloroso e intenso.

— Sim, vamos embora fofinho, este cabelo oleoso desta simplória já enjoa.

— Oleosa é essa tua pele de cobra, andor, põe-te a andar daqui para a fora. – Inconformada a mulher desapareceu da minha vista, mas era o que me havia de faltar levar agora com uns anormais da cidade a falar mal da minha gente.

— É preciso ter uma lata, essa gente acha que por ter dinheiro pode tratar as pessoas como querem e bem lhes apetece.

— Rose, Rose, Rose, o que faço eu contigo? Não podes tratar assim os clientes.

— Tratar assim os clientes, então eles entram aqui a falar mal da nossa vila e ainda querem chá e bolinhos? Que voltem lá para a cidade e não chateiem ninguém. – O meu avô abanou a cabeça e deu um sorriso.

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⏰ Última atualização: Nov 07, 2020 ⏰

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