Conto Anjo Negro

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Esme havia acabado de finalizar seu turno de entregas, e se encontrava centada no pequeno sofá de sua casa que apertava seus traços quadris finos. Após um cochilo desconfortável, ligou o toca disco velho do seu falecido pai e retirou às roupas do serviço de carteira. Como de praxe, acendeu um cigarro e tragou até o momento de dormir. Era uma cidade grande, mas para Esme seu mundo acontecia dentro daquelas paredes em que ela poderia ser o que os outros não entenderia, e quão intenso isso lhe tocava, saber que seu jeito trairia padrões, a fazia sentir fragmentos de maldade, um anjo negro. Nada mais lhe pertencia, assim pensava constantimente, e quanta glória isso se mostrava aos seus olhos. Ter a capacidade humana de ser humana e não fazer uso abusivo desse fardo. Diante disso, Esme considerava que as dores seriam como seringas de morfina, um paradoxo resumido em que quanto mais aplicava em si, em seguida muitos aspectos tornava-se incapazes de feri-la, uma dormência no coração que nem mesmo um murro no estômago lhe faria vomitar - o coração tomava sua garganta.
O posto em que Esme percorria resumia entre duas ruas e algumas casas no campo. Seu trabalho nos Correios iniciou-se depois que sua mãe, Odete, teria fugido com um balconista qualquer de um Pub vagabundo. Ao longo dos dias posteriores ao desaparecimento de Odete, no seu trabalho, marcando seu ponto do dia, escutou dois gerentes conversando sobre o balconista, chamado de Antônio, diziam que ele se vangloriava acerca da mãe com comentários do tipo "toda delícia caidinha por mim", "cama garantida" em seguida davam muitas gargalhadas. Esme ouviu tudo, mas de maneira nenhuma se alterou, sua máscara vazia de desinteresse foi colocada, ela simplesmente prosseguiu.
Desde garotinha, Esme tinha planos em mente. Cada traço alinhado pelos seus desejos. Enquanto mais madura, os instantes fundamentais que poderiam transmitir vestígios sonhados, Esme agia de maneira aversa. Seu problema não advinha por medo de arriscar, menos ainda por plena vontade própria de se danificar. Ela não era masoquista, não diariamente. A trajetória lhe fez escolher, mas ela odiava ficar encurralada entre algo péssimo ou horrível. Assim, escolhia seguir a desvantagem; aptou pela falha porque só isso conhecia durante sua existência, e mais, era fácil lidar com a inércia.
No dia seguinte, após outra noite demasiada fraca de agitação, com sua garrafa de café seca e as cinzas de tabaco pelo chão. Levantou às 6h da matina, exausta e com bolsas embaixo dos olhos, mais um dia de trabalho supérfluo. Logo terminado o serviço, voltou ao correio na sua bicicleta verde, olhou sua mochila e havia esquecido de entregar uma carta. Em partida, viu que o endereço era 5 km de distância de suas rotas, resumindo, tinha sido um longo dia, e Esme só pensava em chegar em casa. Decidiu entregar a carta no próximo dia. Disse em voz alta "não vai ser uma maldita carta que me impedirá de dá um fim a esse dia".
Em sua descansada noite, encarava à carta que estava acima da mesinha de livros. Esme pensou nas leis dos funcionários e suas obrigações com as entregas. Em verdade, caro leitor, se tal lei fosse extinguida, talvez ela não teria lido a carta. Essa questão de leis fez ela abrir para assim, viver de algum modo em oposição ao geral.
O primeiro trecho começou com "Theo, o que dizer em palavras se diante da memória tudo é falado em momentos".
A carta continha quatro páginas e Esme às devorou como um animal cedento. Lia e relia cada linha com estupenda êxtase. Ao vê-se parada diante ao nada, sua mente funcionava automaticamente projetando tudo que acabara de sentir, mas tanta confusão lhe fez chorar incessantemente. Era uma carta de suicídio escrita por Joyce com destinatário a Theo. Ela não fazia ideia de quem eram essas pessoas, nem de fato sua relação. Evidentemente, pensou, um laço tão forte que beirava o inquebrável, quer dizer, não por completo, um deles havia partido por vontade.
Chegando na casa do suposto Theo, Esme sentia uma dor no peito como se alguém tivesse dado um soco. Parada em frente ao portão,  pensou consigo mesma que, Joyce teria sido muitas coisas, menos uma covarde. De jeito matinal, colocou a correspondência no buraco da porta. Ansiosa e fervecente, esperou por alguns infinitos minutos o dono da carta dá as caras. Ela ardia de vontade de vê-lo. De longe, a espreita, viu Theo sair e sentar na varanda com um copão de café. Quem beberia cafeína ao meio dia com o Sol a pino? Esme o invejou, era um momento obscuro. Lá estava ele, jovem, beirando aos vinte e quatro anos, Esme tinha  um ano a menos. Enquanto ele lia, ela admirava sua postura relaxada; depois do sorriso solto que ele produziu, Esme foi embora.
Ela não entregou a carta suicida e original, refez outra com palavras tiradas das lembranças ditas por Joyce no texto de despedida (uma carta mórbida tem lá seus trechos apaixonados). Construiu uma carta direta e divertida, quem diria. Esme não conseguiu entregar a verdadeira por egoísmo, queria ardentemente entender tudo aquilo com mais detalhe.
"Estou indo, Theo, mas saiba que a muito tempo já não estava aqui".
Para obter a resposta, Esme enrolava o carteiro de recolher e o distraía para roubar a carta escrita para "Joyce". A primeira continha uma suavidade gostosa que Esme detestou. Provar coisas novas nem sempre de início agrada, mas a repetição eleva o vício, e ela não gostava desse pensamento, seu desejo era não desejar, inutilmente imaginação.
Trocas e mais trocas de cartas, todas as manhãs fazia seu dever e antes das quatro da tarde ia junto ao Carlos, o carteiro de meia idade, e lhe oferecia um lanche enquanto vasculhava a bolsa atrás da próxima carta.
Esme descobriu tudo que poderia conhecer acerca de alguém. O peculiar e instigante dos fins dos textos, era a frase de despedida escrita em latim "Mare Nostrum" (nosso mar). Curiosa, fez com que Theo admitisse o motivo, era algo íntimo, uma referência a um lago grande onde se encontravam para brincar quando pequenos na cidadezinha que foram criados.
"Amor de infância" pensou Esme.
Esme e sua inclinação à manipulação, ela sabia como se passar por Joyce com sua estratégia de fazer mais perguntas encobrindo sua vaga legitimidade nas palavras.
Meses voaram longe daquela vida. Esme continuava com o fingimento, sem medo, sem consciência nenhuma. Tanto refletiam memórias vividas, na mesma proporção, Theo criava o futuro com planos de viagens com Esme, digo, Joyce.
Joyce, doce e amável, carinhosa e agradáve; assim foi absorvido por Esme nas descrições do Theo. Ela não era nada parecida com elogios principescos, tais perspectivas emergia um pouco de irritação em Esme. Sendo suprimida, pois os sentimentos eloquentes a cada carta recebida deixava ela imaginando profundamente que era Joyce.
Letras cambiantes  manchadas de ternura que transmitia em potência muita vivacidade (como abster de tal magnitude se o ontem era um vão escuro?). Em base ao conjunto de quem foi Joyce para Theo, Esme começou a escrever cartas mais arrepiantes e com palavras marcantes, uma conjuntura de quem ela era e das partes costumeira da personalidade de Joyce. Desse modo, uma relação ilusória a cada dia se fortalecia.
Esme quis ir para um nível mais perigoso. Decidiu visitar Theo.
- Olá, meu nome é Sofia, temos uma amiga em comum. Joyce me contou que eu deveria urgentemente conhecer você, Theo. - disse Esme.
- Sério? Bacana. Entre por favor.
- Então, sei da sua longa amizade com Joyce. É surreal! - Esme disse logo depois de provar do copo de café enorme que ele trouxe, um exagero, e ela adorou.
- Modestamente, o que temos é único. - Theo falou sorrindo, e então continuou - o que te traz aqui, Sofia?
- Bem, queria te conhecer pessoalmente, muita curiosidade. - disse Esme.
- Você tem trocado cartas com ela? - Theo perguntou.
- Geralmente sim, quando tenho fofocas.
Esme incorporou outra versão de personalidade, mas seu peito doía ao olhar para Theo, porém, estava gostando do rumo apresentado.
- E você? Troca cartas com ela? - Esme perguntou.
- Exageradamente. - Theo disse.
- Parece empolgado com isso. - Esme soltou.
-Sim, Sofia, eu sou apaixonado por ela. Tive Joyce ao lado nos dias mais orripilantes, nos mais felizes também. Enxergava ela como uma irmã mais nova que precisava ser protegida, até de mim mesmo.
- Intenso. - Esme disse.
- Pois é. Ela me ama desde pequena, mas agora posso dizer o mesmo nesse sentido, é louco e intenso. - Theo desabafou.
Esme não sabia, mas sua face era tão agradável que chegava a ser convidativo desabafar olhando para ela.
- Que incrível! - disse Esme empolgada.
- Sim. Jamais fui capaz de gostar de alguém, isso me deixava tranquilo e vazio. O vazio era o preço a si pagar pela paz.
- Então sente falta do vazio? - Esme arriscou.
- Não. Agora parece que nunca existiu. - Respondeu surpreso consigo mesmo.
Theo pegou uma carta que estava em cima de uma escrivaninha e entregou a Esme.
- Leia, quero a opinião de uma amiga dela.
Esme começou a ler a carta que tecnicamente foi escrita para Joyce. Era encantadora e com toques existencialistas. Traços crus do que seria a vida reservaria aos dois: empecilhos, sofrimentos. Acima de tudo, descrevia que o amor era uma guerra a ser lutada por dois soldados frente a um batalhão de conflitos. Tão belo e doloroso. Isso não seria interpretado como deveria por Joyce, mas para Esme foi uma luva. Por pequenos segundos, ela esqueceu Joyce e Sofia, suas fantasias.
- Impecável, Theo, impecável! - Esme disse por fim e o abraçou fortemente.
Ela fugiu da casa com sua bicicleta verde, tropeços interiores se progrediam. O vento gritava em seus ouvidos e lágrimas escorriam pelo rosto esbranquiçado. Percebeu, finalmente, que tudo estava embaralhado e inverso, mas também decidido e irrecuperável.
Esme parou em uma rua mal iluminada e sentou no meio fio da estrada. Sua reflexão adiante lhe fez gemer de desespero. Pensou sobre o porquê de ter inventado todo aquele conflito e só conseguiu doer mais a cabeça.
Um senhor se aproximou dela, era Carlos, o carteiro que recolhia as cartas. Esme estava em frente a sua casa.
- Olá, querida, está bem? - disse Carlos.
Esme se acalmou e sentiu sublivações surgindo em graus enormes de desejo de desabafar.
- Bem? Devia perguntar isso para outras pessoas que merecem. - Esme disse se levantando do asfalto e encarando Carlos.
- Venha, me conte o que houve, querida.
- Sou uma má pessoa, foi isso que houve; me sentia invencível por ser alguém dona das próprias decisões, eu conseguia ser melhor que qualquer um. Mas agora vejo que sou fraca, nada além de um punhado de esterco de cavalo.
- Fraca, forte. Continue, querida. - disse Carlos.
- Manipulei cartas de uma jovem que se matou. Joyce era o nome dela, li sua carta escrita antes de sua morte e não entreguei ao destinatário, refiz outras cartas me passando por ela. Eu amei o perigo de fazer algo diferente, do sentimento de ser capaz de criar um destino inverso do real.
Então Esme contou do início ao fim toda a história. E por fim, Carlos respondeu.
- Você não é má, querida. Apenas fez tudo isso porque queria ter controle. Veja bem, sua mãe lhe abandonou, seu pai se matou, e tudo isso escapou como poeira no vento. Apareceu uma chance de você reverter um sofrimento de perda, e você o fez. Esse Theo foi poupado de grande dor, e essa Joyce de uma forma ainda continuou viva, e por fim, ainda recriou essa tal de Sofia porquê no fundo desejou uma amiga como ela. Você deu vida a muitas coisas para não acabar morrendo por dentro. Toda confusão foi justificada com essa coisa de sem leis, como disse. No fim, você também se manipulou, querida.
Esme adordoada e com os olhos fixos na face envelhecida de Carlos, se despediu e partiu para sua casa.
Ao chegar em seu leito, pegou a carta e releu. Esme sabia que a vida era uma porcaria em muitos sentidos, mas não alcançaria compreensão alguma nas pessoas aceitarem sucubir a sua maior vontade, uma hora a vida encarregaria de fazer o serviço completo. Ela não conseguiu descobrir o motivo direto do suicídio de Joyce, entretanto, conseguiu acabar com outra vida - a de Theo - pois pobre Esme, não era uma deusa com poder de mudar o inevitável. No dia seguinte, entregou a carta original de Joyce para Theo. E o resultado, meu bom leitor, foi devasso.
Com algumas semanas depois, Esme pensava no que Carlos disse, mas concluiu que não era tão simples assim. Ela não era tão empática quanto Carlos pensava, ela também era destruidora. Ela amava falhar consigo mesma, mas queria que isso chegasse em outro alguém.
Esme juntou suas coisas e alugou outro quartinho na cidade vizinha, arrumou seu emprego como de carteira novamente e seguiu seus dias lendo cartas de luto e reescrevendo outras felizes no lugar das verdadeiras. Depois de visitar o destinatário, no dia seguinte entregava a carta de luto. Ela se alimentava do amor que prolongava aos outros e do resultado feliz de suas cartas brilhando nos rostos das vítimas. Jamais reencontrava essas pessoas depois de entregar a carta final, pois sabia que o fim não seria apreciado.
Esme não era má, ela era um anjo negro.

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⏰ Última atualização: Nov 16, 2020 ⏰

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